15 de dez. de 2010

Do velho esporte bretão

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Há coisas que exorbitam sua esfera de origem. O exemplo clássico para mim é o futebol. A princípio um jogo, um passatempo, o futebol acaba por envolver uma gama enorme de conceitos sociais. Aprende-se por exemplo disciplina, autocontrole, capacidade de resistir à frustração, fairplay, espírito de grupo etc. etc. O futebol -e qualquer esporte- não é portanto apenas jogo, apenas lazer, e sim uma poderosa ferramenta de formação de caráter. Formação ou deformação, claro: se o que é passado à garotada for a visão distorcida do esporte, do ganhar a qualquer custo, do egoísmo e do vilipêndio ao adversário. Mas vejamos as coisas apenas por sua ótica positiva. Por exemplo, o superego não está no futebol? Claro que está, na figura do juiz, "o homem do apito", reprimindo o que não pode, castigando os excessos. Deixo para os sociólogos e psicólogos, mas será que não poucos garotos, largados, abandonados à própria sorte, não aprenderam a respeitar a figura da "autoridade" (momentaneamente que seja) através de um árbitro de futebol? Assim como no futebol, os excessos na vida são castigados.

E as novelas da Globo? Sou um crítico contumaz: considero o universo da frivolidade e da banalidade. Mas ocorre o seguinte: é entretenimento de massa. As pessoas gostam daquilo. Por que não aceitar que muita gente se instruiu e aprendeu via novelas da Globo? As campanhas da Glória Perez, por exemplo, geralmente trazem temas modernos, em voga- drogas, deficiências mentais, barrigas de aluguel, clonagem humana. Por que não aproveitar esse potencial, e utilizar essa ferramenta? Todos têm televisão em casa. O alcance de um instrumento de massas desse é formidável. Por isso que já não sou a favor do fim das telenovelas. Sou a favor é da sua maior qualidade e de sua função social.

26 de nov. de 2010

Ainda o dogma (a propósito de hereges)

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Tenho falado muito do Orkut, em particular. Apesar das inúmeras críticas que essa ferramenta vem recebendo, ainda é, na minha opinião, a melhor rede social. Tem o Facebook, e até concordo que seja superior em muitos aspectos. Mas nisso de fomentar discussões, de juntar pessoas com interesses comuns, de disseminar informação, eu acho o Orkut melhor. Meu perfil tem quase seis anos, e a quantidade de debates -sobre os mais diversos assuntos- e pessoas diferentes que conheci é inimaginável. Sempre surge alguma coisa nova, alguma coisa interessante. Como esta fala do padre Bede Griffiths, que recebi por scrap:

Além de ser cristão, eu preciso ser um hindu, um budista, jainista, zoroastrista, sikh, muçulmano e judeu. Só assim poderei conhecer a Verdade e encontrar o ponto de reconciliação de todas as religiões... E esta revolução tem que se processar na mente do homem ocidental.

Difícil expressar a alegria que eu sinto, ao tomar conhecimento de falas como essa. Porque a minha posição -eclética, dialética, aberta- é justamente assim: a de enxergar para além da religião.

A fala do padre católico tocado pelo Hinduísmo Griffiths se assemelha -através dos séculos- com a do sábio sufi do séc. XIII Muhammad Ibn Arabi, "al-Shaykh al-Akbar", "O Mestre Supremo", uma pérola de espiritualidade e tolerância:

14 de nov. de 2010

A vitória do bonapartismo

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A História realmente se repete. O homem parece nunca aprender com os erros: avança para retroceder, olha para frente mas pelo retrovisor. É como a citação bíblica, sobre nada de novo haver sob o sol (Eclesiastes, se não me engano). O peso da tradição das gerações mortas oprime, como uma pesadelo, o cérebro dos vivos, como diz Marx. E Marx fala mais: a História, ao se repetir, o faz como farsa. Sempre uma caricatura, sempre um arremedo, grotesco -ou no mínimo ridículo- da coisa imitada. Por exemplo. Pegue-se a obra marxiana de onde foi tirada a ideia acima, o "18 Brumário". Fala das peripécias, pelo poder (acho que o poder individual é a meta de todo medíocre; ainda desenvolverei isso melhor) de Luís Bonaparte, à sombra do tio. Nessa obra há o bolsa-família, por exemplo. Não com esse nome, mas com a mesma ideia, o mesmo objetivo, o mesmo fim: a cooptação da classe trabalhadora, o "cala-boca", a política compensatória que rebaixa, e não redime.

Foi de outra forma, que o lulismo obteve em volta dos 80% de aprovação popular? O lulismo, o da reforma da previdência, das parcerias público-privadas, do aumento da participação do capital privado (estrangeiro inclusive) nas empresas públicas, o dos ruralistas como herois, o das velhas oligarquias (Collor e Sarney, por exemplo) recrudescidas. Não falo em mensalões e corrupção, "aloprados" e dinheiro em cuecas, em valeriodutos e coisas do tipo; isso tudo é inerente ao sistema. O governo melhor intencionado, neste sistema, não ficará livre disso. O que denuncia o lulismo é o neoliberalismo, aplicado nos mais diversos matizes, mascarado pelas tintas sociais que lhe deram tal índice de aprovação. O aumento no consumo é o endividamento nas Casas Bahia, o acesso ao ensino superior é o fomento aos tubarões do ensino privado enquanto se sucateia a universidade pública. E assim o lulismo vai construindo sua popularidade.

E o papel da esquerda, nesse cenário?

5 de nov. de 2010

São Jorge dos Revolucionários

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Hoje senti vontade de falar com Ogum. No início do ano passado, eu já havia escrito um post sobre sua dança. Agora sinto o Orixá de novo dançando. Desta vez na minha mente, desta vez no espaço-tempo, não mais um menino mirrado na praia de Copacabana, mas um soldado romano de capa vermelha, trajes rotos, mãos sujas de poeira e sangue. Mas o gládio brilha, reluzindo sob um sol imaginário, Jorge da Capadócia, cujo capacete também reluz, Jorge da Capadócia, dançando diante do dragão recém-vencido. Jorge dança, e o universo se torna expressão de sua dança, Jorge, que é Ogum, portanto o movimento, portanto...a dialética.

Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, a poucos quarteirões de distância do escritório. Naquele burburinho da Praça Tiradentes, em meio a ônibus e comércio da Avenida Passos, em meio a garotas de programa da esquina (sim, mesmo à tarde já se pode encontrá-las), em meio ao calor do horário de verão, lá está a Igreja, e é lá que, quando sinto vontade, encontro Ogum. Antes, Santo Expedito. Expeditus, soldado-lenda, santo-mito (redundância?), indicando que o momento é hoje (hodie) e não amanhã (cras). A ave negra, o corvo demoníaco, repete "cras! cras!" em nossos ouvidos, mas o santo o mantém aprisionado, sob seus pés, dominado. O hoje venceu o amanhã. Não é preciso ser católico, ou mesmo religioso, para captar o que esse romano de lenda quer nos passar, nos ensinar. O ateu "praticante" (coisa ridícula, porque o ateísmo acaba funcionando ele próprio de crença), em sua aversão, em seu pensamento binário acaba por deixar escapar essas lições, porque têm um fundo religioso. Mas tire o fundo religioso e a lição se mantém! O maior dos ateus, não fosse binário, poderia aprender com Expedito. Poderia, quando visse a imagem de Expedito -como estou vendo neste momento, enorme no altar da Igreja- identificar no corvo pisoteado todas as aspirações, todos os sonhos que, por medo e preguiça, deixamos para amanhã. E poderia ouvir o "hodie!", hoje, forte da boca do santo, convidando para a práxis . Como ouço agora. Não existindo, Expedito nos ensina mais que muitos "gurus" reais.

30 de out. de 2010

De prostituição, pais e filhos- e advocacia

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Chamar alguém de "prostituto" é muito sério. Tradicionalmente é um dos adjetivos mais degradantes, principalmente quando se refere às mulheres. A prostituição tem uma pecha social muito forte: no Nordeste é dito que o medo dos pais é o de que seja homossexual o filho e piranha a filha (o medo não é, portanto, de que sejam viciados, criminosos, hipócritas ou vis: e sim de que disponham do próprio corpo como bem quiserem, o que deveria ser um direito inalienável do ser humano). A prostituta está tão entranhada no inconsciente da cultura judaico-cristã, que tradições ocultistas a associam à Sofia ("sabedoria"), prostituta e santa, e lembremos também da discípula direta, Madalena. Penso eu que o tabu da prostituta tem raiz longínqua, no surgimento da sociedade de classes, quando a mulher, assim como o bem, tornou-se propriedade privada. Nesse sentido, a prostituta, que não é propriedade de ninguém, simbolicamente é uma revolucionária; mas é uma vítima, por outro lado, quando é prostituta por falta de condições objetivas que lhe permitissem optar por outros rumos de vida, ou quando essa mesma cultura judaico-cristã a maltrata, a espezinha, a violenta -em mais de um sentido- por essa opção (ou falta de).

Mas não é sobre prostituição que quero falar. O que eu ia dizendo é que acusar alguém de se prostituir é uma ofensa grave. Que dizer quando isso é falado do próprio filho? Pois isso foi dito em plena Vara de Família: ao se levantar ao término da audiência, o pai -sujeito asqueroso até na aparência- resmungou com seu advogado, alto o suficiente para que todos na sala ouvissem: "-Até quando vamos cafetinar o garoto?". Quem tem cafetão é prostituta. Ao ser condenado (provisoriamente) a pagar alimentos ao filho (meu cliente), maior de idade -mas ainda cursando faculdade- o pai se colocava como cafetão, e o rebento, por dedução lógica, como garoto de programa. Era uma afronta: que eu, como advogado, tomei para mim.

22 de out. de 2010

O advogado e o bombeiro

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Ele entra, sorridente, um sorriso carismático de gente simpática. Negro, alto e magro, bem magro. E começa a me contar o problema: faz parte das minhas matérias favoritas, concurso público, um dos assuntos clássicos para um juspublicista como eu. Bombeiro! Ele quer ser bombeiro, mas uma flagrante ilegalidade no edital impede isso. Penso cá comigo, enquanto ouço ele narrar o problema, que o Estado deveria ser obrigado a aceitar todos interessados em ser, não apenas bombeiros, mas médicos, professores, construtores, cientistas, jardineiros, carpinteiros, pedreiros- todos, todos que tenham algo a acrescentar, algo a somar, deveriam ser obrigatoriamente aceitos pelo Estado. Mas não é o caso: meu cliente quer ser bombeiro, mas um edital perverso impede isso.

O assunto é de fácil solução, penso comigo. Mas não digo isso a ele: é preciso valorizar a profissão. Faço umas ponderações, explico superficialmente os meandros jurídicos envolvidos, acerto os honorários -módicos, não sou careiro- e eis-me logo em seguida debruçado sobre a causa. Há urgência: a data pro concurso se aproxima. Quanto tempo, Dr. Joycemar, para obter a liminar no mandado de segurança? Oh, nem uma semana? Coisa corriqueira na Advocacia: às vezes 24 horas decidem tudo. Entrei com a ação. Apesar de sua flagrante ilegalidade, a Administração resistiu obstinadamente: até agravo de instrumento houve. Mas em vão, ganhei tudo. Até que o bom senso imperou (ou as ações começaram a pulular), e o próprio Estado republicou o edital, eliminando o requisito ilegal.

15 de out. de 2010

Maiakovsky e os trolls

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Há um tipo de artista -os polêmicos, os instigantes, os desafiadores- que atrai, como um ímã, as mais diversas espécies de pessoas, pro bem e pro mal. E justamente por serem polêmicos, instigantes, desafiadores. É natural: os chatos e os medíocres (i.e., medianos) não costumam ter muita audiência, quando muito tão chata quanto eles. O polêmico tem ibope mais alto, o que não quer dizer necessariamente que tenha mais qualidade. Muitas vezes a (falsa) polêmica é exatamente a arma do medíocre para aparecer, para ganhar a mídia e o mercado. Quem é bom -na área que for- não precisa disso. Aparece naturalmente, a polêmica que desperta, as reações -contra e a favor- vêm naturalmente. Pendurar melancia no pescoço é para os fracos.

Quando desperta a atenção (com qualidade, portanto), o indivíduo traz junto...a inveja. Vem no pacote. O medíocre, o que precisa da melancia no pescoço, vai justamente invejar quem não necessita de nada disso: e dá-lhe perseguição, críticas destrutivas, ou, como se fala aqui na web, trollagem. Isto é, a saudável prática de aporrinhar sistematicamente alguém.

8 de out. de 2010

Umbanda

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Estamos no quarto. É penumbra, o que acrescenta carga dramática à cena. Conto a ela o encontro com a Entidade, e naturalmente estou emocionado. Não sei dizer até que ponto acredito; não sei dizer o tanto que, de toda cantiga e de toda vela, de todo atabaque e de toda defumação, era real ou não. Não sei dizer se aquilo que se desenrolou diante dos meus olhos era fato ou mistificado. Não é difícil ser enganado: mas como quer que seja a Entidade estava lá, na minha frente, e me olhava fixo.

O cambono -o nome dado aos ajudantes do terreiro- chamou meu número, e me dirigi ao congá. O primeiro contato com a espiritualidade, o primeiro contato com o lado de lá. Direto, cara a cara, ao contrário do Kardecismo. E o Kardecismo não era nada perto daquilo. Kardec, com os eruditos textos doutrinários e palestrantes suaves de fala difícil, pouco tinha a ver com os gemidos, os urros, os cânticos. As velas e as estátuas me tocavam muito mais o coração. Quem vem de Kardec pouco está preparado para isso, para o caldeirão místico que irradia, qual lâmpada, do congá. Aqui os médiuns giravam, literalmente giravam. E aquela senhora, tão frágil e alquebrada, com Ogum (Megê? Rompe-mato? Iara?) dentro dela era como alguém possuído. Podia derrubar qualquer homem naquela sala, tamanha força emanava, principalmente brandindo a espada-de-são-jorge que, ao contato com os "obsediados", murchava- impressionante. Vi isso.

1 de out. de 2010

Falando de blogs

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Tenho mantido a média de uma postagem por semana, sempre que der vontade às sextas, nos últimos tempos. Além de permitir uma escrita mais "relaxada" (a pressa é inimiga da perfeição), gosto de pensar no leitor do blog, à vontade em casa, aproveitando o fim de semana para boas leituras. Do blog, inclusive. A sexta-feira para mim, aliás, me remete a relaxamento, a sensação de dever cumprido: passou a semana com seus desafios, agora é relaxar e restaurar baterias. E nada melhor para isso que ler alguma coisa interessante (na medida em que este blog seja interessante).

O tipo de assunto tratado no Elogio da Dialética favorece essa periodicidade maior. Falamos aqui em política e cultura em geral (como coloquei no singelo banner que criei, e disponibilizei na sidebar), de forma "atemporal", sem compromissos com "bombas midiáticas". Não é um blog descartável. Trotsky e Henry Miller, Marx e Bob Marley, são atuais desde sempre, o que não quer dizer que não falemos de atualidades (há a tag "atualidades", bem grandinha já, aliás, de tantos posts relacionados) mas até essas atualidades têm sua cor "permanente", trazem um pano de fundo "permanente".

24 de set. de 2010

African herbsman (e um agradecimento)

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Na última postagem falei em Bob Marley. Foi tão en passant que queria voltar ao assunto, e com certeza tio Bob merece uma postagem própria (e na verdade me surpreendo ao ver, quatro anos de blog depois, que ainda não tenha escrito mais a fundo sobre Marley; a única referência, olhando pra trás, é a ilustração do post Sobre ópios e fermentos, "O olho de Jah", que achei em algum lugar pelo google).

Nunca fui propriamente "regueiro". Até pode-se dizer que conheço pouco: algum Black Uhuru, Yellowman, Israel Vibration, Jimmy Cliff (óbvio), e fico por aí. Era, isso sim, bobmarleyzeiro: tinha camisa, pôster no quarto e fita tricolor etíope (aquela verde-amarela-vermelha) no pulso. A idade ajudava: ainda tava no segundo grau, ainda não tinha adentrado os portões austeros e conservadores do estudo do Direito. Comecei a ouvir Bob Marley através -hoje dá até vergonha- do Cidade Negra, vergonha porque há muito esse grupo (ainda existe? o Toni Garrido tá fazendo novela) virou pop, longe da verve original da época do Ras Bernardo.

O que exatamente me cativou em Bob Marley?

17 de set. de 2010

Música e rebeldia

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Bad Religion é legal porque, ao lado da verve punk, há o ritmo melodioso. Daí "hardcore melódico", que é a vertente californiana do estilo, em oposição ao hardcore nova-iorquino, que é o "hardcore pau", tipo pa-pa-pa. Pelo menos era assim que se dizia, há uns 10 anos atrás, quando eu comprava "Rock Press", finada revista sobre, obviamente, rock.

Não é verdade que rock seja música "rebelde". É tão rebelde quanto qualquer outro estilo musical possa ser. "Almas rebeldes" temos em quaisquer acordes, reggae por exemplo ("Soul rebel" é o nome de uma música de Bob Marley) ou MPB, com toda a subversão -camuflada que fosse- de um Chico Buarque diante da ditadura. Ademais, ser rebelde não quer dizer grande coisa por si só. Não é sinônimo de progressismo, por exemplo. Pode-se ser um reacionário rebelde, se insurgindo contra os avanços sociais. O "rebelde sem causa" é uma coisa vazia, fútil. É um pequeno burguês.

10 de set. de 2010

Contra o fundamentalismo

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Tudo é passível de inúmeras interpretações. Não me refiro aos "fatos": um fato é um fato, e você não pode interpretar se ele ocorreu ou não; se paira dúvida, sequer fato é, sequer alteração objetiva na realidade trouxe. A existência do fato está acima de conjecturas, portanto, e o que há são as interpretações sobre a natureza do fato. É nesse sentido que há as inúmeras discussões, os inúmeros enfoques, sobre algo. Por exemplo, um copo de 300ml que esteja com apenas 150ml (fato) pode estar meio cheio ou meio vazio (interpretação). Acho saudável que paire sempre, sobre os fatos, interpretações as mais diversas. É mostra de diversidade, de riqueza da vida.

Por isso gosto da frase de Picasso: "Si hubiera una sola verdad, no se podrían hacer cien lienzos sobre un mismo tema". Sou contra portanto a "visão única", a "visão oficial" que cerceia e assassina a diversidade. A visão única é justamente o tema deste post, sendo que do fundamentalismo político já falamos muito aqui, na figura do stalinismo. Quero centrar agora no fundamentalismo religioso (o qual também não é assunto inédito no blog, em todo caso).

3 de set. de 2010

Elogio da revolução

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Perguntam-me se o ser humano é um eterno insatisfeito. A resposta é sim, e o "querer" é justamente inerente à vida, conforme já falamos em outras postagens. Mas, se se pergunta se essa insatisfação será entrave para a sociedade comunista, eu digo não, naturalmente. Se justamente a insatisfação é o que nos faz chegar até ela, enojados que estamos com o velho sistema, com a velha exploração do homem sobre o homem. A classe trabalhadora -hoje, lato sensu: não mais apenas o trabalhador de fábrica, mas todos aqueles que têm sobre si o peso do Capital, todos aqueles, independentemente de origem classista, que odeiam a forma de produção capitalista- se une, um anseio em comum, e promove a revolução social. Também aqui é a vontade que gira a roda.

Mas e se não der certo? Se a revolução soçobrar? A primeira coisa que deve ser dita é que, na história da humanidade, os conceitos de "êxito" e "fracasso" são relativos. Um pobre carpinteiro palestino foi subjugado a pauladas e crucificado, não obstante sua doutrina hoje tem alcance planetário. A Comuna de Paris, reprimida em sangue, mas sempre um modelo de "assalto ao céu". No mito, Tróia saqueada e queimada, mas é dela que veio o povo romano que conquistou o mundo. E os exemplos se sucedem, na vida real e na imaginação mitológica, de fracassos que redundam em vitória, de insucessos que, no fundo, foram muito mais exitosos que conquistas evidentes. Isso é a dialética. No erro há o acerto, e também o acerto traz sua carga de erro. É questão de enfoque, de ponto de vista.

27 de ago. de 2010

Nos portões do cemitério, com The Smiths

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"Cemetry gates" me remete a 1996, que foi quando ouvi "The Queen is dead" pela primeira vez. Comecei a ouvir os 80's não propriamente nos 80's, mas sim com quase uma década de atraso. Não faz mal: cá estamos nós, antes de irmos para o Empório, em Ipanema, ouvindo The Smiths derramando aquela poesia toda. Poesia mesmo: a letra, uma das mais líricas que já vi, é nada mais nada menos que um passeio, portas do cemitério adentro, por entre túmulos de antigos poetas. A voz peculiar de Morrissey (que vulgarmente chamamos de "estar com um ovo na boca") carrega no "Waaalllde", referência ao seu Oscar querido, ao passo que também Keats e Yeats aparecem, em espírito, pelo menos.

Oscar Wilde já é citado no blog, em uma postagem sobre seu "A alma do homem sob o socialismo". Era não apenas poeta e dramaturgo, mas também um sujeito politizado, como se vê; terminou seus dias humilhado e degradado, condenado que fora por sodomia, crime na Inglaterra vitoriana. William Butler Yeats (1865- 1939) foi um poeta irlandês, e John Keats (1795- 1821), inglês, ambos referências de Morrissey. As letras dos Smiths são sempre recheadas de referências literárias ou históricas, como por exemplo Joana D'Arc em "Big mouth strikes again" e Antônio e Cleópatra em "Some girls are bigger than others". Música culta e pop ao mesmo tempo, portanto, diferente das banalidades dos últimos 20 anos.

20 de ago. de 2010

Um esboço teológico: Deus e nós mesmos

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Uma coisa interessante é que, seja pelo viés metafísico seja pelo materialista, não deveríamos nunca estar nos aborrecendo, ou aflitos, com o que quer que fosse. Se algo de ruim nos acontece, é a vontade de Deus. Deus sabe o que faz, logo ficamos serenos e deixamos o problema transcorrer confiantes. Mas, se Deus não existe, tampouco há que se esquentar a cabeça. Algo de ruim nos aconteceu? Que bobagem, amanhã morreremos todos, vale a pena esquentar com isso? A vida acaba e com ela o sofrimento. Crentes e ateus unidos na convicção de que não vale a pena sofrer.

Falar é fácil. Sofrer faz parte de estarmos vivos. A vida é, com o perdão da redundância, viva, e almejamos, desejamos, anelamos, aspiramos, algo. Algo qualquer. E é bom que seja assim, não querer é estar morto, é estar estagnado, conforme falei no post, Fernando Pessoa (aliás, Alberto Caeiro) como imagem, "O não querer é contrarrevolucionário". O grande segredo talvez seja não "não querer", e sim querer sem sofrer. Seria a solução dialética do problema, o "querer" de um lado, como elemento impulsionador da vida, combinado com a ausência de sofrimento por tal querer, pelo contrário, combinado com a alegria por termos ânsia, vontade. Ficamos com o que é bom, deixando de lado o inconveniente no "querer". Fazemos assim do querer uma fonte de alegria, pois se querer é estar vivo, temos vida, e vida em abundância (copyright João 10:10).

14 de ago. de 2010

Perfumes

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Exupéry diz, em "Terra dos Homens", obra da qual já falei (aqui e aqui) que o cheiro de mar, para quem o sentiu uma única vez, não pode mais ser esquecido. Não pego o livro há um bom tempo, mas a ideia passada é exatamente essa. Eu, que passei a infância e adolescência em um bairro litorâneo, Copacabana, sei exatamente o que é isso: o quanto o cheiro do mar é marcante, é indelével. Um perfume salgado que remete a amplidões, que traz consigo visões de pequenos barcos de pesca da Colônia de Pescadores, no Posto 6. Onde há o pequeno santuário de Nossa Senhora, de manto azul- azul como esse mar que, quando à noite passeamos pela areia, aspiramos. O cheiro não vem sozinho, como se vê. Há a sensação da areia molhada sob os pés e o barulho do mar. O mar, pelo mero fato de existir, atinge-nos todos os sentidos.

Nas Barcas, a caminho de Niterói, também há esse cheiro. Mas já conspurcado, já vilipendiado, como um santuário profanado. O que é natural, em outros lugares, na Baía de Guanabara é poluído, toda a carga de dejetos que nós, seres humanos, reiteradamente despejamos sobre a natureza. E ei-la fétida, águas macilentas, amareladas. Mas ainda assim águas, ainda assim mar: sofre, mas não é avara, a natureza. Por sobre todo o fedor dos detritos, ainda nos dá, sutil que seja, o mesmo perfume de mar. E tornamos a nos sentir em casa, mas em casa num sentido mais profundo.

7 de ago. de 2010

Alguns poemas preferidos

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Demorei algum tempo até que tivesse saco para ler a "Ode marítima" inteira, de Fernando Pessoa sob o heterônimo Álvaro de Campos. E que coisa. Como alguém pode se lamentar tanto assim de algo que podia, mas nunca lera até então? A "Ode" é fantástica. É comprida -o que explica a falta de saco inicial- mas acaba por prender do início ao fim, e nos sentimos viajando pelos sete mares, sem sequer tirar os pés do cais do porto. Náufragos e ilhas desertas, barris de rum e almirantes, tudo está lá, todas as "coisas navais, velhos brinquedos de sonhos", e, por sobre tudo, Aquela, cujo espírito de bruxa dança, figuradamente, enquanto a carnificina pirata é consumada em alto-mar. Que imagem feminina linda. Cruel e sensual. Vejo então o quanto gosto de mulheres de espírito de bruxa.

Esse cenário marítimo nos leva, com o narrador do poema, ao delírio. Ele sente na carne o que é sofrer, e não só isso, o que é incutir, um ataque pirata. Nessa parte o poema se torna sanguinário e é preciso criar um Deus novo que dê conta disso, não um deus qualquer mas um "Deus dum culto ao contrário". Sentimos, junto com Álvaro de Campos, o que é ser o "pirata-resumo" e a "vítima-síntese", mas só até que o delírio passe: cá estamos de novo, defronte ao cais, olhando, serenos, o navio que se perde no horizonte.

2 de ago. de 2010

Eleições 2010: o PCB e a construção do Poder Popular

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Uma coisa que me incomoda, em época de eleições, é a grande quantidade de pessoas que passam alheias ao momento. São a encarnação do "analfabeto político" de Brecht, aquele que se orgulha de não estar interessado em política, sem saber, estúpido que é, que toda vida em sociedade depende justamente das decisões políticas- do preço do remédio ao da comida.

Somos homens terrenos, situados em um contexto material. Não é preciso negar a espiritualidade ou a religião para compreender esse fato, o da nossa imersão na realidade física. E se estamos situados no aqui e no agora -e não alhures no limbo- é aqui, desde já, que devemos buscar nossa felicidade, e não protelá-la para um futuro nebuloso. A religião que perde isso de vista é a religião criticada por Marx, a do "ópio do povo", o "soluço da criatura oprimida" que se contenta com a flor imaginária, alheio à flor real que quer desabrochar e espalhar seu perfume. A Teologia da Libertação entendeu isso. A libertação, em sentido teológico, não prescinde da libertação material, concreta, do cotidiano.

As eleições, mais precisamente, a importância da participação ativa nas eleições está nesse contexto, o da busca consciente por uma melhor sociedade. É nesse momento, mais do que nunca, que se fala em propostas, que se fala em sugestões, em programas, em rumos para a vida do país- rumos esses que não só nos influenciarão como às gerações seguintes, em maior ou menor escala. Há que se manter alheio a isso? Evidentemente que não.

6 de jul. de 2010

Rumi, Hallaj e a "Verdade"

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A tela do computador substitui, cada vez mais, os livros. É por isso que, acho eu, essa deve ser a segunda ou terceira postagem em que me coloco não de livro na mão, e sim na frente de uma tela de computador. É indiferente, em todo caso: se por um lado tenho o fetiche do "livro", do manuseio do papel, por outro importa é o acesso à cultura. E a internet é pródiga nisso, já falamos sobre na postagem O paradoxo. Onde mais, senão na internet, poderíamos encontrar de forma barata e acessível (basta lançar no Google!) esse vasto material sobre o sufismo?

O sufismo é o lado esotérico ("eso", dentro, interno) do islã.  Reynold Nicholson: "Todo o Sufismo está na crença em que, quando o eu individual se perde, o Eu Universal é encontrado". As opiniões se dividem. Para alguns (os dogmáticos, justamente) o sufismo é parte do islã, é inerente a ele. Querem que o sufismo seja do islã. Já eu digo que também é do islã, mas não exclusivo dele, e Ibn Arabi deixou isso tão claro, mas tão claro, que não vejo sentido em insistir nisso. Para outros, igualmente dogmáticos, por sua vez, o sufismo é mesmo uma heresia- e o ato supremo dessa mentalidade foi o martírio de Mansur al Hallaj, que em seu transe místico ousou dizer Ana al-Haqq ("Sou a Verdade"). Uma blasfêmia, uma apostasia, para o fundamentalista. De um lado e de outro, como se vê, o sufismo é presa do dogma. (O dogma não é assunto novo no blog:  já falamos a respeito aqui). O dogma quer capturá-lo justamente porque o sufismo não fala com o dogma, mas com a poesia.

27 de jun. de 2010

Observando (e um pouco de zen)

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Considero-me observador. É difícil esquecer um nome, um rosto. Cá no meu canto, enquanto aguardo – filas, guichês, ônibus – faço um rastreamento das coisas ao me redor. É um passatempo; tanta diversidade, tanta riqueza ao alcance de nosso olhos. Não é um cinema, mas pessoas reais, de carne e osso. E como isso é mais rico que o cinema, poucas pessoas se dão conta.

Por exemplo, estou no tribunal – não importa qual, nem o dia. O debate se desenrolava no plenário. Não uma sessão de julgamento, com todos os rigores solenes, mas sim juízes e advogados abordando temas em comum, um tipo de procedimento corriqueiro naquele tipo de Justiça. No fundo do plenário, oculta pela penumbra, lá estava ela. Sendo os cabelos e as roupas escuras, apenas o rosto alvo se destacava. Era bonita, eu pude notar, não a beleza gritante da juventude, mas madura, menos pela idade e mais pela postura. Juíza... Todo o modus operandi de uma austera autoridade. Foi enquanto transcorria o debate no plenário que a descobri, lá, parada, em pose de Helena Blavatsky. Pois era teosófica sua pose, sua postura, seu olhar. Teosófico, se é que podemos definir assim uma pose, uma postura, um olhar, mas nenhum outro termo seria mais adequado. E o olhar, eu percebia bem, estava em mim. Talvez não em mim, propriamente, mas no espaço físico etéreo-astral onde eu me situava, aqueles olhos de Blavatsky perscrutando o que os nossos, de leigos, não conseguem. Talvez eu não estivesse ali, pra ela. Olhava através de mim. Seja como for, precisei quebrar o encanto para prestar atenção no debate que se desenrolava.

18 de jun. de 2010

Um barulho na noite

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Abro os olhos. Uma pena- o sonho estava bom. Revisitava uma praça da minha infância, no bairro Peixoto, Copacabana. Estava mudada: o cenário era estranhamente botânico, digamos assim, plantas e flores para todos os lados, mas os brinquedos os mesmos, como costumavam ser, cheia de crianças. Enfim, um sonho agradável, nostálgico, mas com um pano de fundo de mistério, digamos assim de novo, como convém a todo bom sonho e ao id e seu domínio. Mas como dizia, abro os olhos e tudo se esvanece: acordo com um ruído no quarto. Intrigado tento, como um animal de sentidos desenvolvidos, apurar os ouvidos no escuro e identificar a fonte do ruído. Não consigo.

Sento na cama, ainda no escuro, conjeturando. Seria o ventilador, que, mesmo em dias frios, tenho o hábito de deixar ligado? Seriam cupins no armário? Seria...seria...? As hipóteses iam sendo descartadas conforme surgiam. Restava, ah, não, não pode ser, não o sobrenatural. A mais implausível das possibilidades. Mas implausível hoje. Houve tempo de temor supersticioso, de crucifixos e dente de alho no bolso, tempos de sinal-da-cruz e pai-nossos. Mas é passado, ficou para trás nas névoas da minha Idade Média particular.

13 de jun. de 2010

Contra o pensamento binário (de novo)

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Até Jacarepaguá é um bom pedaço, mas não estou sozinho. Levo comigo Trotsky em biografia: queria poesia, queria literatura, mas Trotsky é ele também poesia. E como não? Engajar-se na Rússia czarista é poesia, fazer a revolução é, ser o presidente do Soviete de Petrogado é, presidente do Comitê Militar Revolucionário, Comissário do Povo para a Guerra é...Fundador do Exército Vermelho. Depois a perseguição, a calúnia e o exílio, mantendo sempre a fina dialética viva, até a morte, à traição -como é de praxe- pelo agente stalinista. Quem não enxergar poesia nisso tudo não entende de poesia, é um aleijado, humanamente falando.

Uma coisa que acontece é que muitos não querem saber de poesia- real ou figurada. Poesia é meio que um desvio na mente dessas pessoas, eles que abraçaram o obscurantismo. Eles que têm a dialética de uma porta. Você que tem um animal de estimação, faça o teste: mais fácil o bicho entendê-los do que esses de quem falo. Os stalinistas são desse gênero de porta. Torno a esse assunto sem receio de me tornar monotemático. Porque é um assunto ainda palpável, ainda vivo e, como tal, preocupante. Preocupante para todos nós que reivindicamos o marxismo e o leninismo e, como tal, não podem abrir mão da dialética. E o stalinismo é o inimigo número um da dialética.

6 de jun. de 2010

De cavaleiros templários

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Foi uma noite. Imbuído de melancolia, faço o que costumo fazer nesses momentos: leio o "Eu" de Augusto dos Anjos. Contraditório que seja, ler versos de tristeza, quando se está triste, é ter um pouco de alegria.  É ver que não se está sozinho. Daí, folheando as páginas, chego a "Vandalismo", um primor de poesia cruel. Cruel, e o próprio nome do soneto dá a pista- o vandalismo é o do despedaçar dos próprios sonhos, "no desespero dos iconoclastas". Mas que bela imagem, o contraste: primeiro Augusto nos apresenta as "catedrais virginais", com ênfase em sua pureza e beleza, para então acrescentar à cena a loucura do vândalo, que a tudo destrói. Como um estupro. E esse vandalismo, essa ofensiva aos "templos claros e risonhos", não se dá desacompanhada: conosco estão os "velhos Templários medievais".

Quem já leu "O pêndulo de Foucault", de Umberto Eco, com toda teoria da conspiração que permeia a obra, sabe que, no universo hermético -o do ocultismo- tudo se interliga de alguma forma. Não há acaso. O simpático padeiro pode ser membro de uma seita, assim como o colega de bar, sem que saibamos, um grão-mestre de alguma ordem obscura. Tudo sem que saibamos, sem que sequer desconfiemos. Eles, por sua vez, nos manipulam -a nós e à ordem mundial- e nos usam como joguetes de seus desígnios além da compreensão dos leigos. É nesse clima de conspirações que "O pêndulo de Foucault" se desenvolve, uma trama que confunde o leitor e o arrasta num turbilhão de suposições e suspense psicológico junto com o protagonista do livro, Casaubon. E, dentro do espírito do livro, o fato de Augusto dos Anjos ter incluído em seu poema os cavaleiros templários -um clássico do universo ocultista- não poderia ter sido mero acaso. Teria sido Augusto um iniciado?

1 de jun. de 2010

Tédio e vida

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Parece que os espíritos tendem a ser atraídos para a mediocridade. Em todos os campos, em todas as esferas de atuação humana- no amor inclusive, e principalmente, haja visto que a maioria (absoluta) dos relacionamentos deságua naquele fantasma inexorável, o tédio. É aquela história: façamos o que for, acabamos por nos conformar, nos habituar, castrando qualquer outra possibilidade de mudança. Triste, principalmente, quando sequer nos damos conta disso, e nos contentamos com nosso pequeno mundo. E enxergamos nele o ideal de felicidade que pedimos a Deus.

Não quero ser intolerante. Acredito que as pessoas têm a liberdade de seguir rigorosamente o tipo de vida que quiserem, mesmo que esse tipo possa parecer inadequado ao olhos dos outros. Defendo a liberdade plena- por ser comunista, sou libertário. A pessoa deve ser livre até para cercear a própria liberdade, se assim quiser. O que acho que é essa liberdade, justamente para fazer jus a esse nome, deve ser consciente, voluntária. E não imposta por padrões preconcebidos e arcaicos. A "tradição" é um perigo. A mulher aceita ser reduzida a uma dona de casa geradora de rebentos simplesmente porque sua avó, e a avó de sua avó, eram assim. E acha que esse é o papel dela, também. Isso não é liberdade: é lavagem cerebral, é a reprodução acrítica de um comportamento.

26 de mai. de 2010

Falando de horas

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1. O melhor horário para mim -o mais misterioso, digamos assim- são as 18:00.  É uma espécie de interlúdio entre duas fases, onde noite e dia se misturam, se mesclam, copulam. Encerra-se o ciclo: o dia acaba, e adentramos o reino da noite. Estamos no limiar, daqui pra frente é a noite e seu domínio.  É a hora da Ave-maria, é a hora, não sei por quê, em que me vêm à mente lembranças de praças arborizadas.

2. Ao meio-dia, o sol parece estar zangado. Despeja aqui embaixo sua fúria, condensada em raios e mais raios. Impressionante: arde. Queima a pele. Daí pensamos em todas as notícias cataclísmicas que recebemos da mídia, sobre fim do mundo e efeito estufa. Derretimento dos pólos. Quando era menino, o ano 2000 seria o final dos tempos. Falávamos brincando, mas havia um pouquinho de medo da profecia mesmo no espírito infantil. Já se passaram 10 anos de 2000, e cá ainda estamos. O mundo acaba diariamente para quem morre, é simples assim. Por que tanta coisa e tanto Nostradamus? Mas, é meio-dia e o sol é apocalíptico.

O que motiva essa fúria do sol? E sofremos nós todos aqui embaixo, eu mais que todos, maldito quem disse que advogado nos trópicos precisa de paletó.

19 de mai. de 2010

Todos os sentidos

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1. O que era uma dor forte se transformou num leve incômodo. Correr de jeito nenhum, mas já posso andar sem capengar. Tem algo de ridículo em mancar por aí, mas, pior que isso, é ver como os verdadeiros deficientes sofrem nesse mundo egoísta: degraus altos, escadas inacessíveis – realmente as coisas não são projetadas para os idosos, para os incapacitados. Bem, não estou mancando mais, o corpo se regenera (como tudo vivo) e a vida segue seu ritmo.

Tentei voltar ao muay thai, mas não deu. O joelho (que já era ruim) aguentou só quatro treinos.  Parei mesmo no kruang vermelho-ponta-azul (o kruang é uma faixa amarrada ao braço, um amuleto, entre os lutadores tailandeses, mas que no ocidente é usado como crítério de graduação). O espírito – já tem postagem sobre isso – é invencível, mas a matéria é fraca. Muay thai pra mim, definitivamente, é passado.

2. O escuro tem algo de mágico. Estamos de olhos bem abertos, mas nada vem- só o negrume, como um vazio, como um nada que, na verdade, é repleto de mistério. Afinal, não vemos, mas as coisas estão lá. Elas apenas não aparecem para nós, mas estão lá. Quem disse que as coisas precisam de nós? O escuro tem algo de cósmico. Caminhar às escuras é a sensação que, acredito, tem o meteoro, quando atravessa o breu universal.

14 de mai. de 2010

Algumas opiniões filosóficas

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O problema do dualismo (ou binarismo) é que enxerga apenas A e B, preto e branco. A dialética, ao contrário, reconhece o preto e o branco como diferentes, mas sabe que se tocam -os inúmeros tons de cinza- e que, ainda, o preto às vezes se faz de branco e vice-versa.

O stalinismo é binário. Dentro de sua lógica, se a direita critica Stálin, e Trotsky também critica, então Trotsky é direita.  O "então" é o coração dessa falácia, a raiz do sofisma. Daí Leandro Konder falar em "deformação antidialética dos tempos de Stálin", deformação esta que ainda faz vítimas. Não se pode falar em deformações antidialéticas dentro do marxismo, que é, nas palavras de Trotsky, a teoria do movimento e não da estagnação. Sendo a teoria do movimento, o marxismo é dialético, e não binário. Daí concluímos que stalinismo e marxismo são coisas antagônicas.

O que é dito acima deve ser tomado com cuidado. A dialética não pode dar margem a interpretações oportunistas, com tudo sendo justificado em prol dessa ductibilidade. Em que pese o preto poder agir como branco, preto e branco são coisas distintas. Negar essa distinção é falsificar a dialética.

6 de mai. de 2010

Duas notas de Bukowski

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Das "Notas de um velho safado" (Notes of a Dirty Old Man), gosto em particular de duas, logo no início. Ambas por curiosidade envolvem Jack Kerouac, autor de "On the road", associado à geração beatnik. A primeira tem como personagem Neal Cassady- justamente personagem de "On the road", como o nome "Dean Moriarty". A outra narra um encontro com Kerouac em pessoa.

Uma digressão: o triste em Kerouac é o modo como terminou. Nas palavras de Eduardo Bueno: "Jack Kerouac morreu em outubro de 1969, depois de anos sentado no sofá vendo programas de auditório na TV da casa de sua mãe (com quem morou a vida inteira), barrigudo, alcoólatra e reacionário, afastado de seus companheiros da geração beat, odiando cada cabeludo americano e se perguntando o que, afinal, havia de errado com On the road". Um final triste, como se vê, quase trágico.

O que gosto, no tipo de literatura de Bukowski, é o estilo cru e direto, underground. Não se romanceia muito: é a vida, mais precisamente a vida real, que a literatura "poliana" não mostra. É o caso de Henry Miller: às vezes pervertido, outras imoral. Escatológico também, mas, e essa é a mágica, extremamente lírico. Pura poesia no submundo, em meio a garrafas vazias, ressacas, sexo sujo, imundícies (principalmente no "Trópico de Câncer").

21 de abr. de 2010

A casa dividida (ou o partido de tendências)

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Está escrito, em algum lugar do Novo Testamento, que uma casa dividida não pode subsistir. É quando acusam Jesus de expulsar demônios em nome do próprio Cão. Jesus retruca, logicamente: como poderia eu ser um demônio e ao mesmo tempo expulsar meus irmãos? Não faria sentido. Seria uma casa dividida, a dos demônios. Uns contra os outros. Dessa forma, se enfraquecem, e a casa cai. E isso naturalmente vale para tudo na vida: nenhum organismo, nenhuma organização, nenhuma família pode viver eternamente em pé-de-guerra. Isso necessariamente acabará mal, cedo ou tarde. E entre mortos e feridos salve-se quem puder.

A metáfora bíblica é pertinente para analisarmos um tipo peculiar de partido político, que age em regra  exatamente como facções de demônios brigando entre si. Refiro-me ao famigerado formato de "partido de tendências", do qual é (ou era, com a debandada dos dissidentes) exemplo o PT, no Brasil. Outro exemplo temos no PSOL, partido que, justamente composto de tendências saídas do PT, veio para o campo da esquerda quando aquele já se mostrava irremediavelmente degenerado. Ocorre que o PSOL também caminha, passos largos, para a degeneração.

2 de abr. de 2010

Sobre cristianismo e revolução

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Em outra postagem tenho falado da necessidade de como, se quisermos chegar à verdade, ou ao mais próximo possível dela, devemos passar por cima de subjetivismos. Deixar que preconceitos pessoais ofusquem o raciocínio é andar em círculos. Não se avança. Nesse sentido, acho muito oportuna a frase de Nietzsche, sobre as convicções serem mais inimigas da verdade que a mentira. Pois o "convicto" não se preocupa com a verdade, tão-somente com a verdade dele. O método dialético, que como marxista eu professo, é radicalmente diferente disso. Analisamos o todo para chegar às partes e vice-versa, cônscios das contradições que permeiam toda estrutura social, toda relação humana, toda atividade humana, que permeiam, enfim, o próprio homem enquanto ser histórico, social e espiritual.

Causa-me estranheza intelectuais negarem, por exemplo, o aspecto revolucionário do cristianismo em seu nascedouro. Partem para o arrolamento dos crimes da Inquisição, da pedofilia da Igreja, da perversão dos Bórgias etc etc. E ficam nisso. Ora, não há organização humana que seja isenta de desvios, por melhor intencionada que seja sua filosofia. Homens estão situados num contexto histórico-material, e como tal fazem sua História, não livremente (e sim sob as circunstâncias legadas e transmitidas do passado, diz Marx no 18 Brumário), mas fazem. No erro e no acerto. Em qualquer caso, o cristianismo não se reduz à Igreja Católica.

19 de mar. de 2010

O mais humano dos homens

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O ser humano historicamente teve necessidade de guias. Digo teve, porque acredito que chegará um momento em que, com a emancipação humana, essa fase se torne passado. Mas teve, tem tido, necessidade, de modo que basta alguém melhor dotado (de carisma, de inteligência, de dinheiro), e ei-nos fervorosos seguidores, rebanho fiel repetindo "amém". Pior ainda quando os "ídolos" são os fúteis, os do esporte, da música, da novela- fúteis não por causa do esporte ou da arte em si, que têm seu papel no desenvolvimento humano, mas sim pelo caráter que tais manifestações adotam num sistema alienante como o capitalista.

São ridículas as cenas de adolescentes se descabelando pelo galãzinho, mas não deixam de ser um rito de passagem. Complicado é quando homens adultos, supostamente guiados por um método científico como é o marxismo, cedem à essa tentação. Não é raro encontrarmos "marxistas" (com aspas, naturalmente) dóceis aos "guias". Mas esses são os stalinistas, os fãs do "Guia Genial dos Povos", do "Grande Timoneiro"- o "Marechalíssimo" (sic) Josef Stálin.

14 de mar. de 2010

Meditando sobre a morte

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Michel de Montaigne diz que "meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade", afinal "quem aprende a morrer desaprende de servir". Boa frase, que faz sentido. Claro que podemos, e devemos, buscar a liberdade nesta vida, mas ninguém nega que a morte seja boa redentora das misérias do cotidiano. Montaigne, aliás, tal apologia faz da morte que recebeu severa reprimenda de Pascal. Para Pascal, as opiniões de Montaigne inspiram "indiferença pela salvação sem temor e sem arrependimento", pois "em todo seu livro ele só pensa em morrer covardemente e com moleza". Mas Pascal era católico. A religião pode servir -e geralmente, em regra mesmo, tem servido- para embotar o espírito do livre-pensador. Quantos vôos mentais são cerceados, quando se inculca neles o dogma religioso?

Mas em todo caso não é esse o enfoque que gostaria de dar sobre esta minha "meditação sobre a morte". Há pouco, morreu uma cachorrinha da minha casa. Uma doença que se tornou crônica, irreversível, que culminou com uma falência múltipla de órgãos. Resultado, morte para o animalzinho e dor para os donos. 

3 de fev. de 2010

1 ano de Tribuna Comunista

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Há pouco tempo, nesta postagem, falei da minha iniciativa em criar um novo fórum de debates, o Tribuna Comunista. A postagem é de março de 2009, mas o fórum desde fevereiro já estava em funcionamento- portanto, já completamos 1 ano de atividade. Passou rápido.

Passado esse ano, posso sustentar o que havia dito naquela oportunidade: um fórum em formato phpBB ainda é, indiscutivelmente, o melhor espaço para discussões. É incrível, mas o maior "rival," o Orkut (cuja popularidade no Brasil vem decaindo, mas ainda de forma lenta, em prol de outras redes tipo Twitter e Facebook) não desenvolveu, desse tempo pra cá, nenhuma melhora nos ambientes de fóruns de suas comunidades. As mesmas deficiências continuam: impossibilidade de editar mensagens, de trancar tópicos, de dividir o fórum por assunto etc. Continua espantoso pra mim que pessoas que conhecem o phpBB optem por continuar utilizando o Orkut, diante disso.

25 de jan. de 2010

Sobre terremotos e racismo

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Começo o ano com uma postagem pouco confortável: o tema é o Haiti. O desconforto não é pelo país nem pelo seu povo- ao contrário, são heróicos. O primeiro país do mundo onde os escravos eliminaram a escravidão- os próprios escravos, sem concessões e esmolas dos senhores. Um povo que, corajosamente, arrancou a liberdade das mãos do explorador. Um povo solidário: ao lá desembarcar, em suas jornadas pela libertação da América espanhola, Bolívar precisou se comprometer com o fim da escravidão nos países que viessem a ser libertados, como condição para receber o suporte do povo haitiano. Portanto, quando falo em desconforto quando falamos do Haiti, não me refiro ao seu povo.

Também não me refiro ao terremoto. É um fenômeno da natureza- e a natureza tem suas idiossincrasias. Fenômenos naturais existem desde sempre, e a única coisa que nos cabe é tentar minorar seus efeitos.