Michel de Montaigne diz que "meditar sobre a morte é meditar sobre a liberdade", afinal "quem aprende a morrer desaprende de servir". Boa frase, que faz sentido. Claro que podemos, e devemos, buscar a liberdade nesta vida, mas ninguém nega que a morte seja boa redentora das misérias do cotidiano. Montaigne, aliás, tal apologia faz da morte que recebeu severa reprimenda de Pascal. Para Pascal, as opiniões de Montaigne inspiram "indiferença pela salvação sem temor e sem arrependimento", pois "em todo seu livro ele só pensa em morrer covardemente e com moleza". Mas Pascal era católico. A religião pode servir -e geralmente, em regra mesmo, tem servido- para embotar o espírito do livre-pensador. Quantos vôos mentais são cerceados, quando se inculca neles o dogma religioso?
Mas em todo caso não é esse o enfoque que gostaria de dar sobre esta minha "meditação sobre a morte". Há pouco, morreu uma cachorrinha da minha casa. Uma doença que se tornou crônica, irreversível, que culminou com uma falência múltipla de órgãos. Resultado, morte para o animalzinho e dor para os donos.
Uma coisa curiosa é que a dor é sempre algo pessoal. Não se pode imaginar (muito menos mensurar, para mais ou para menos) o que se passa dentro do coração alheio. As condolências e pêsames têm mero aspecto formal. "Entendo o que está sentindo", não, não entende. A dor é pessoal. O que é um pássaro, um gato, um cachorro, para alguém chorar sua morte? Mas para o dono, aquela é uma morte a ser chorada. É pessoal, como dito- o que aos olhos de uns pode parecer efêmero, para outros é crucial.
Lembro-me, alguns anos atrás, de um fato que ocorreu em minha vida profissional. Uma mulher, em processo de separação, lamentava-se do marido. Graças ao marido -ao seu mau comportamento, ao seu espírito perdulário- o filho mais novo do casal nunca teve ar condicionado no quarto. E ela chorava, as lágrimas rolavam ao se lembrar dessa miséria, dessa afronta, dessa indignidade... O filho nunca teve ar condicionado no quarto... Isso é algo a ser chorado.
Durante muito tempo, lembrava-me dessa mulher com desprezo. Era pura expressão da mentalidade burguesa. Hoje, refletindo sobre o que disse acima, sobre a relatividade do sofrimento, consigo compreendê-la. Dentro do universo burguês na qual se movia, não ter um ar condicionado no quarto é um sofrimento. Falei acima da impossibilidade de mensurar sofrimento; de fato, não há régua, não há medida que venha dizer que, "isso é sofrimento", "isso não é", "isso é mais ou menos sofrimento". A medida é a pessoal. Vai de cada um. Portanto não tenho mais desprezo por essa mulher, hoje, e sim pena: justamente por estar imbuída de mentalidade burguesa, pela qual a falta de ar condicionado no quarto do filho mais novo é algo a ser chorado.
Enfim. Acaba que este post, mais que uma meditação sobre a morte, é uma meditação sobre o sofrimento. Estão interligados, todavia. É uma homenagem, também, à cachorrinha cuja morte deu ensejo a esta meditação.
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A imagem da postagem é a Morte, tal como imaginada pelo escritor de quadrinhos inglês Neil Gaiman.
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