7 de dez. de 2006

"A propósito disto", em três curtos atos

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Converso com ela pelo ciberespaço. Através de íons, elétrons, prótons, quarks, raios gama e x, pela nuvem de neutrinos, temos a nossa conversação- e é através desse meio fluídico que trocamos palavras de amor. Sim, pois já não resta dúvidas de que estamos apaixonados, o turbilhão cósmico já nos capturou, é a deusa Vênus que nos embala no leito.
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Estive mais cedo na feira de livros. No vento gelado que entrava pela roupa, em meio a livros de vodu, xadrez, materialismo dialético, romances de Sholokhov, em tudo sinto a presença dela. "Também pensa em mim?", suspiro bem suavemente no canto da mente. Não é mais no ciberespaço, mas através do fluido vital, ali mesmo, naquele exato momento, que nos tocamos.

30 de out. de 2006

O guardador de carros

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O cenário do final de noite era uma barraquinha de churrasquinho, alguns bancos de plástico e o carro do dono do negócio, entoando um sertanejo alto apesar do avançado da hora. À base de muita cerveja, já estávamos naquele estágio etílico onde a letargia nos domina preguiçosamente e, em silêncio, meditamos nos assuntos da vida como só um bêbado pode fazer.

Então ele chega, animado, dançando, cantando, mexendo com todo mundo. Parece um morador de rua, mas é apenas um guardador de carros do bairro aproveitando, naquele momento, um curto período de folga. Fala conosco. Estava alcoolizado, o que tornava suas falas quase sem sentido, tornando-lhe a princípio uma companhia incômoda, mas estávamos nós também tomados daquela ternura alcoólica, onde o mundo parece bom e os homens, todos irmãos- já tendo dito, a propósito, Baudelaire, que o homem bom que bebe se torna excelente. E observamos, assim, sem maiores complicações, as evoluções do novo companheiro.

26 de set. de 2006

Um sonho qualquer

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Era um sonho em que escalava prédios, edifícios, construções, sempre pra cima, cravando as unhas no concreto, no reboco, e olhando do alto a cidade- e daí vinha a vertigem e o medo real da queda.

Disso, temos outro cenário: olhamos de cima, como se flutuássemos no teto. É um quarto, ocupado no centro por uma cama coberta de tecido púrpura e ao canto uma escrivaninha. Sei que é um quarto de poeta -no sonhos, sabemos cada detalhe que precisa ser conhecido- e sei que houve ali uma tragédia, ou ao menos algo digno de pesar. O tal poeta morreu; e foi por amor que ele morreu. Um balaço na testa, cianureto com vinho, não importa, foi uma morte passional.

28 de ago. de 2006

Castro e a Revolução

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Muito se falou sobre Fidel Castro e Cuba nos últimos dias, em razão da doença do velho revolucionário. Neste exato momento pouca notícia temos sobre sua saúde, salvo que tem se recuperado, sendo o governo por ora exercido em nome de Raúl Castro, igualmente experimentado na época da Sierra Maestra. Muito tem sido especulado, portanto. Fala-se em "transição pacífica para a democracia", por exemplo. Os exilados cubanos em Miami soltam fogos. Bush torce as mãos de contentamento, os neoconservadores ianques provavelmente deliram com uma invasão vitoriosa como a que houve para "libertar" o Iraque. Bem, vejamos, esse festival de reacionarismo merece uma respostinha.

8 de ago. de 2006

Bach, ou a chave de prata

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Mais que um leigo, sou um bárbaro: pouco sei de música clássica. Talvez por isso eu seja atingido com mais facilidade, talvez por isso faltem palavras e assome o espanto, tal qual um primitivo diante do que seja -aos seus olhos- inefável. Como agora: estou deitado na cama, e ouço algo. É Bach? Sim, mas poderia ser música de fada. Suíte nº3, ária na corda sol *. Já agora estou diante do computador, e ainda ouço: impossível não sentir o peso no coração, a quase dor física que nos faz contrair o rosto em aflição, quando as notas entram rasgando suaves, quando somos soterrados pelo vagalhão de melodia que nos lembra de qualquer coisa remota, mas lembra.

24 de jul. de 2006

Cordialmente

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Coloco o coração como o centro de convergência da força humana. Ali, condensam-se as energias cruciais, ancestrais, primitivas, atávicas, essenciais, e também os orgasmos, os delírios, os sabores, as sensações, os ódios, os amores, os impulsos, as pulsões, os sonhos- e o que vem desse cadinho guia nossos passos, controlado, ou não, por aquela outra grande força, a do intelecto. O homem, então, é razão e emoção, num (des)equilíbrio duvidoso. Se fosse possível dizer isso, seria o coração o lar simbólico do id; é ali, e não na mente, que nosso lado animal tem lugar. O coração é fonte de poder: e isso era sabido pelos primitivos, ao comer o coração dos inimigos de guerra.

6 de jul. de 2006

Contágio

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Garaudy diz que a poesia é contagiosa. A arte é sagrada quando não nos deixa intactos, prossegue ele, de modo que no mergulho poético há o perigo de perda, de destruição, de transformação de fragmentos do ego, que serão devidamente substituídos e transformados em algo novo. O poema destrói em um primeiro momento o leitor, para reerguê-lo em seguida: e o que renasce não é o de outrora. Com efeito, que dizer de uma peça artística que nenhuma influência cause no receptor? Foi produzida debalde, perdeu-se.

Pego um livro de poemas, antigo, um tanto amarelado. Meu pai deu-me há dez anos, vejo pela dedicatória no frontispício, e já era na época um livro de segunda mão. Pego-o porque se trata de poesia contagiosa, não é um livro qualquer: abalou-me sobremaneira e ainda abala, e assim será. Falo do "Eu" de Augusto dos Anjos, poeta sobre o qual Olavo Bilac, ao ouvir alguns versos, disse que "fez bem em morrer, não se perdeu grande coisa", Augusto dos Anjos, cuja obra foi comparada com ouro, mas "ouro desperdiçado, ouro mal aplicado".

28 de jun. de 2006

O ingovernável

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A imagem que erroneamente nos é imposta de Henry David Thoreau é a de um misantropo, um ermitão, avesso a qualquer contato humano. Ao ler o "Rebelde de Concord", biografia escrita por August Derleth, essa imagem se desfaz: temos um homem culto, dotado de boas relações (amigo pessoal de Emerson!) e que ganhava a vida como palestrante. Inimigo das instituições criadas pelo homem, mas não do próprio. E, por ser inimigo de tais instituições, optou por viver em um reino à parte.

Como não compreender Thoreau? Como não considerar como mais intensa, mais viva, mais -em uma palavra- verdadeira a vida em uma cabana de bosque, às margens de um lago? Por que optar por esse ideal bucólico soa estranho? Thoreau quer ser deixado em paz. Tributos, leis, eleições, um emprego, governantes, isso tudo soa estranho aos seus ouvidos.

22 de jun. de 2006

Revolução permanente

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"É por este motivo que Stálin precisava vê-lo morto: porque o poder nas mãos do manipulador vai ao extremo da morte, e o estilo dialético é vida, portanto, um inimigo", diz Nicholas Mosley ("O assassinato de Trotsky"). Decerto "dialética" é um adjetivo adequado à personalidade do camarada Lev Bronstein: dono de raciocínio claro, amante do debate, às vezes contraditório, de fina erudição. Figura ímpar da Revolução de Outubro. Em John Reed ("Os dez dias que abalaram o mundo"), não raro temos a impressão de tê-lo como da mesma importância que Lênin. Criador do Exército Vermelho, nos anos desesperançados de guerra civil e intervenção estrangeira. Não obstante, foi vítima da máquina burocrática stalinista: em meio a um turbilhão de calúnias e difamação, ei-lo riscado dos anais da História.

19 de jun. de 2006

Terra dos homens

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Dessa obra de Exupéry, Sartre disse capaz de levá-lo às lágrimas. Se tem tal efeito sobre um existencialista - gente nauseada da vida-, o que dirá de almas mais sensíveis e impressionáveis. Trata-se de uma ode ao ser humano, e a frase de Guillaumet, "o que eu fiz, palavra que nenhum bicho, só um homem, era capaz de fazer..." é a condensação desse espírito. Em tudo, há algo nobre; de cada ocorrido, pode-se extrair algo de útil. E os cenários que servem de pano de fundo para essas meditações! A noite do Saara, o Estreito de Magalhães, uma tenda de beduínos, os Andes chilenos, Túnis, um forte no meio do nada, um trem repleto de poloneses, um porão de anarquistas na Espanha- impossível, se tivermos em mente que são reminiscências reais, enfim, passar por essa leitura incólume.

15 de jun. de 2006

Henry Miller

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Retratar a própria vida como um romance é uma tarefa interessante. Árdua, eu diria, constrangedora, às vezes maçante. E foi isso que Henry Valentine Miller (1891-1980) fez, em seus romances autobiográficos. Há muita fantasia, decerto- e o próprio admitiu isso, mas nada que reduza em importância o esforço hercúleo que é transformar fatos banais do dia a dia em fonte de instigação mental alheia.


Caso eu me dedicasse a uma tarefa do tipo, a primeira dificuldade -entendo- seria de ordem ética. Teria eu o direito, afinal, de transformar as pessoas ao meu redor em personagem de romance? Pode-se trocar os nomes, naturalmente, mas aqueles tornados personagens involuntários fatalmente se reconheceriam ali- e seria fácil ferir suscetibilidades assim. E não deixaria de ser, no mínimo, uma indelicadeza e indiscrição com tantas confidências e idiossincrasias particulares tornadas públicas.

Ainda o drama palestino

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Assim como as notícias sobre violência urbana nas grandes cidades tendem a não causar mais maiores comoções, a opinião pública mundial parece já estar anestesiada com as notícias que chegam do Oriente Médio- e não me refiro ao Iraque ocupado e jogado à anarquia. Falo da Palestina, aquela terra dita "santa", onde tudo parece ser milimetricamente urdido para impedir a emancipação de um povo.