27 de jun. de 2010

Observando (e um pouco de zen)


Considero-me observador. É difícil esquecer um nome, um rosto. Cá no meu canto, enquanto aguardo – filas, guichês, ônibus – faço um rastreamento das coisas ao me redor. É um passatempo; tanta diversidade, tanta riqueza ao alcance de nosso olhos. Não é um cinema, mas pessoas reais, de carne e osso. E como isso é mais rico que o cinema, poucas pessoas se dão conta.

Por exemplo, estou no tribunal – não importa qual, nem o dia. O debate se desenrolava no plenário. Não uma sessão de julgamento, com todos os rigores solenes, mas sim juízes e advogados abordando temas em comum, um tipo de procedimento corriqueiro naquele tipo de Justiça. No fundo do plenário, oculta pela penumbra, lá estava ela. Sendo os cabelos e as roupas escuras, apenas o rosto alvo se destacava. Era bonita, eu pude notar, não a beleza gritante da juventude, mas madura, menos pela idade e mais pela postura. Juíza... Todo o modus operandi de uma austera autoridade. Foi enquanto transcorria o debate no plenário que a descobri, lá, parada, em pose de Helena Blavatsky. Pois era teosófica sua pose, sua postura, seu olhar. Teosófico, se é que podemos definir assim uma pose, uma postura, um olhar, mas nenhum outro termo seria mais adequado. E o olhar, eu percebia bem, estava em mim. Talvez não em mim, propriamente, mas no espaço físico etéreo-astral onde eu me situava, aqueles olhos de Blavatsky perscrutando o que os nossos, de leigos, não conseguem. Talvez eu não estivesse ali, pra ela. Olhava através de mim. Seja como for, precisei quebrar o encanto para prestar atenção no debate que se desenrolava.

Outro personagem... Voltando anos no tempo, primeiro dia de aula, alguma série do segundo grau. O garoto está lá, lembro como se fosse hoje: debruçado sobre o caderno enquanto o professor fala. Tem um sorriso nos lábios, onde já desponta um pré-bigode, um sorriso malicioso de quem obviamente não está sobre o caderno fazendo a lição. Outro estudante olha por cima de seu ombro, interessado, também alheio à aula. Dá uma risada; o desenhista (porque ficou claro que é um desenho que está fazendo) continua imperturbável, ainda sorrindo de leve, caprichando em sua obra-prima. Então parece ter terminado. O que riu me pergunta, "não parece um mosquito?". O desenhista, já sorrindo abertamente, vira a folha para mim. Era para ser uma caricatura do professor, mas parecia mesmo com um mosquito.

A escola zen ensina que é preciso parar e observar. Osho não é exatamente zen mas diz isto dentro do espírito:
Quando estiver sentado, procure ficar consciente- tenha consciência do ato de sentar. Não só da cadeira, não só do ambiente em que está, da atmosfera que o cerca; mas do fato de estar sentado.
Como isso é difícil para mentes ocidentais como a nossa... Pois não se trata apenas de parar e ficar consciente; a consciência deve ser a da não-mente, superior à mente cotidiana, dos turbilhões de pensamentos que tumultuam o simples fato de estar sentado. A mera reflexão do ato de estar sentado desmancha a mágica toda. É preciso sentar, apenas isso. Sentar e observar.

Mas os dois personagens observados acima são do passado. Como será, diante dos meus olhos, alguém do futuro? Também posso visualizá-lo, mas com os olhos da mente, esse personagem do porvir. Será operário, mas não o operário embrutecido dos dias de hoje, e sim um operário-filósofo, ou cientista-operário. Do tipo que "trabalha ao mesmo tempo nas oficinas e nas bibliotecas", como disse Bukhárin dos homens nascidos da Revolução Russa de 1917. O trabalho braçal não o rebaixa, antes, o dignifica enquanto homem, rompidas todas as alienações e toda a contradição homem x trabalho. O fruto do trabalho desse homem não é mais alheio, antes é seu, e o que é seu é de toda a coletividade – pois todos recebem da coletividade o que necessitam. Não mais um sistema competitivo, antes cooperativo; não mais de rivalidade e sim de solidariedade.

É esse o homem que observo, com meus óculos de ver o futuro. O homem do século XXX de Maiakovsky, o homem do comunismo longínquo. Ele me saúda: com suas mãos enluvadas de sábio-operário, com seu macacão de bibliotecário-maquinista, me saúda com o sorriso dos justos. Como convém a um homem do futuro.

*

Essa postagem trouxe tags novas. Helena Blavatsky fundou a Sociedade Teosófica, daí a referência. Osho, na verdade "Rajneesh" Chandra Mohan Jain, foi um polêmico guru indiano, heterodoxo mesmo para o zen. Quanto a Nikolai Bukhárin, foi líder bolchevique, morto nos expurgos stalinistas – vítima de algo que ele próprio ajudou a fomentar, diga-se de passagem. Não obstante, fino intelectual, autor do clássico "Tratado de Materialismo Histórico".

A imagem da postagem, ainda em homenagem ao espírito zen, é "Garoto observando o monte Fuji", de Katsushika Hokusai (1760- 1849).

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