18 de jun. de 2010

Um barulho na noite


Abro os olhos. Uma pena- o sonho estava bom. Revisitava uma praça da minha infância, no bairro Peixoto, Copacabana. Estava mudada: o cenário era estranhamente botânico, digamos assim, plantas e flores para todos os lados, mas os brinquedos os mesmos, como costumavam ser, cheia de crianças. Enfim, um sonho agradável, nostálgico, mas com um pano de fundo de mistério, digamos assim de novo, como convém a todo bom sonho e ao id e seu domínio. Mas como dizia, abro os olhos e tudo se esvanece: acordo com um ruído no quarto. Intrigado tento, como um animal de sentidos desenvolvidos, apurar os ouvidos no escuro e identificar a fonte do ruído. Não consigo.

Sento na cama, ainda no escuro, conjeturando. Seria o ventilador, que, mesmo em dias frios, tenho o hábito de deixar ligado? Seriam cupins no armário? Seria...seria...? As hipóteses iam sendo descartadas conforme surgiam. Restava, ah, não, não pode ser, não o sobrenatural. A mais implausível das possibilidades. Mas implausível hoje. Houve tempo de temor supersticioso, de crucifixos e dente de alho no bolso, tempos de sinal-da-cruz e pai-nossos. Mas é passado, ficou para trás nas névoas da minha Idade Média particular.

(A Idade Média...Por que costumamos associá-la ao obscurantismo? Foi a época da opressão da Igreja, é verdade, mas não foi também a época dos cavaleiros e da Excalibur, e das princesas e dragões? Por que obscurantismo, se Merlin era mais sábio que qualquer dos homens de ciência de hoje? Mas insistimos em manchar sua reputação. "Idade das trevas", costumamos chamar, "trevas", a era de Marco Polo e de Dante Alighieri. Difamação. E lendo minha fala no parágrafo acima, vejo que me juntei ao rol dos difamadores).

Levanto e rondo o quarto, farejando como um sabujo. De onde diabos vem o barulho? Daí percebo: desde que me levantei, o barulho cessou. É um enigma. Torno a deitar. Barulho. Levanto. Silêncio. Cai a ficha: é a própria cama, rangendo, ao peso do meu corpo. É um móvel velho, com o estrado já rachado. Embaixo mantenho uma espécie de suporte, à base de tijolos, para que a parte quebrada da estrutura da cama não desabe. Justamente esse suporte saíra do lugar, e eis os ruídos que me tiraram da minha praça da infância. Mais um pouco, quem sabe, a cama teria desabado e levado-me consigo ao chão. Pois bem, devolvo o suporte ao lugar e torno a deitar.

O Rio de Janeiro é uma cidade quente, o que particularmente considero uma pena. Mas eventualmente faz frio, muito frio, e essa semana tem sido assim. Volto para a cama e me embrulho no meu cobertor, na minha pele de urso, como um viking do século X. Lá fora é o breu glacial, de Odin e de Thor.

Barulho? O único que temo é o do despertador, logo mais.

4 comentários:

  1. O enigma desperta de tudo: foi-se até a Idade Média nesse trajeo pelo descobrir o que era o tal barulho. Podia ser tudo. Foi tudo enquanto perdurou o enigma. Até que se descobre que é apenas um apoio da cama fora de seu lugar, que é apenas o corriqueiro nos chamando a atenção.
    É tão bom permanecer nas esferas do enigma... é onde chegamos ao século X, viking. E esquecemos do despertador...

    Sua escrita é muito boa! =)

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  2. Eu admiro teu jeito de escrever (já devo ter dito isso rsrsrs).
    Também tenho essa mania de ligar o ventilador mesmo em tempo frio. Ele faz um barulho que não atrapalha o sono, como esse que atrapalhou o teu e te fez viajar.

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  3. Saudações Comunistas, Tejo! Bom texto! Me lembrou um conto do Graciliano Ramos, um dos melhores escritores de todos os tempo em minha opinião!

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  4. Muito obrigado, Bruna e Emanuella.

    E, Cléo, Graciliano Ramos é covardia, rs.

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