10 de set. de 2010

Contra o fundamentalismo

Tudo é passível de inúmeras interpretações. Não me refiro aos "fatos": um fato é um fato, e você não pode interpretar se ele ocorreu ou não; se paira dúvida, sequer fato é, sequer alteração objetiva na realidade trouxe. A existência do fato está acima de conjecturas, portanto, e o que há são as interpretações sobre a natureza do fato. É nesse sentido que há as inúmeras discussões, os inúmeros enfoques, sobre algo. Por exemplo, um copo de 300ml que esteja com apenas 150ml (fato) pode estar meio cheio ou meio vazio (interpretação). Acho saudável que paire sempre, sobre os fatos, interpretações as mais diversas. É mostra de diversidade, de riqueza da vida.

Por isso gosto da frase de Picasso: "Si hubiera una sola verdad, no se podrían hacer cien lienzos sobre un mismo tema". Sou contra portanto a "visão única", a "visão oficial" que cerceia e assassina a diversidade. A visão única é justamente o tema deste post, sendo que do fundamentalismo político já falamos muito aqui, na figura do stalinismo. Quero centrar agora no fundamentalismo religioso (o qual também não é assunto inédito no blog, em todo caso).

Roger Garaudy diz que o "integrismo" é a pretensão de possuir a verdade absoluta. É um "comportamento" que não é privilégio de uma religião específica- isso foi falado neste post, "Religião, doença infantil da religiosidade". Uma de suas manifestações -não exclusiva, repito- encontramos no Islã, tornada pública pelo sensacionalismo da mídia ocidental. Por exemplo, nesses tempos de Ahmadinejad e suposto programa nuclear do Irã, nossas atenções são voltadas para Sakineh, a iraniana que, por suposto envolvimento em adultério e na morte de seu marido, está condenada a morrer. A pedradas.

Há duas coisas que precisam ser faladas, antes de mais nada.

Primeiro, não podemos cair no jogo dos norte-americanos. O Irã incomoda o imperialismo ianque, por seu desafio aberto e sua postura anti-Israel. Justamente por isso, há o interesse norte-americano de desestabilizar o país, utilizando inclusive de ampla campanha midiática. Toda notícia que recebemos do Irã, portanto, deve passar por nosso crivo crítico, para que possamos separar o joio do trigo.

Segundo, não podemos ser "eurocêntricos". Há manifestações, expressões culturais, do Oriente, que não encontram similitude ocidental, e nem por isso podem ser consideradas inferiores. É o que eu falo logo no início do post sobre o respeito à diversidade. O mundo é vasto, e nosso ponto de vista não é o único e, quiçá, sequer o melhor.

Mas essas observações acima não podem, de jeito nenhum, servir para encobrir o obscurantismo. Penso que não se pode relativizar a dignidade humana. Sob qual pretexto for.

O que choca, nos integristas islâmicos, é que querem, no séc. XXI, aplicar um código de regras árabe do séc. VII. A limitação não é apenas geográfica, portanto (o que é próprio para a cultura árabe talvez não seja para um esquimó ou letão, por exemplo), mas temporal. Esquecem que o Corão foi dado a homens situados em determinado local e em determinado momento histórico, e como tal deve ser interpretado levando-se em conta sua contextualização.

Reparem que o que eu digo não diminui o Corão enquanto revelação divina. Sendo uma revelação divina (consideremos assim- não menos que a Torah, o Baghavad Gita, os Evangelhos), Deus, que o revelou, em sua sabedoria (é onisciente, afinal, sendo a onisciência atributo da divindade), leva em consideração o fato dos homens...evoluírem. Um árabe do séc. VII era alheio ao conceito de "dignidade da pessoa humana", por exemplo, que só após a primeira dimensão de direitos humanos, a partir do séc. XVIII, começou a ser burilado. Dignidade essa que impede, que mostra ser repelente, penas corporais como a mutilação e o apedrejamento.

Mas não é o Islã que seja atrasado (de novo, não mais que o Hinduísmo, o Judaísmo, o Cristianismo). As interpretações que se fazem dele é que são.

Daí a fala de Mohammed Iqbal, cit. p. Garaudy ("Rumo a uma guerra santa"):

O Corão ensina que a vida é uma criação permanente, o que exige que cada geração, guiada, porém não imobilizada, pela obra de seus predecessores, tenha o direito de resolver seus próprios problemas.

Os fundamentalistas são aqueles que não estão abertos a essa "criação permanente" e ficaram, congelados, lá por volta do séc. VII.

E acham que uma noite de prazer, fora do "sacrossanto matrimônio" (quanta hipocrisia) justifica uma morte a pedradas. Coisa que sequer um animal mereceria passar (aliás, causa-nos arrepios de horror imaginar uma criatura qualquer ser morta à base de chuvas de pedras). Curiosamente, nossa legislação em 2005 revogou o art. 240 do Código Penal, que dispunha sobre o crime de "adultério". Nós, seres humanos imperfeitos, não achamos que alguém mereça ser processado e condenado criminalmente por isso (há as consequências cíveis, mas isso é outra história). Que dirá ser destroçado a pedradas. E tampouco Deus, que é "indulgente e misericordioso" (Corão, 2: 54) há de querer. Salvo na mente dos fundamentalistas.

*

Uma coisa que gostaria de dizer. Parece-me que, à luz do método materialista histórico, poderíamos enxergar no fundamentalismo islâmico uma forma de resistência cultural à dominação material estrangeira, na figura dos colonizadores europeus. Mas isso explica, e não justifica. Toda resistência dos oprimidos é valorosa, mas a luta deve ser emancipadora, caso contrário anda-se em círculos.

*

Como enfrentar o fundamentalismo? Com dialética, e jamais com mais fundamentalismo.

3 comentários:

  1. Caro J.L Tejo acabei de ler o seu texto e você expressou tudo o que penso e o que sinto acerca de tal tema.

    Um texto belo, leve e de fácil entendimento e rico em filosofia.

    Parabéns!!!

    É de gente como você que o marxismo precisa.

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  2. Muito bom, embora que o fundamentalismo e idéias retardas estão em todas religiões.

    No meu ver toda religião necessita de um certo fundamentalismo pra manter a fantasia.

    Parabéns pelo texto.

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  3. Valeu, Fernando. Também aprecio seu trabalho, em seu blog, combatendo esse mesmo fundamentalismo- na figura do criacionismo, por exemplo.

    José Mário, acho que o fundamentalismo está presente em toda religião, na medida em que identifiquemos o fundamentalismo com o dogma. O dogma, isto é, o "arraigamento" em dada crença ("é isso porque é") é próprio da religião (mas não da religiosidade).

    Mas mesmo o dogma pode adotar -conforme falo em vários postagens- caráter progressista. O problema assim não é o dogma, e sim a interpretação que é feita dele.

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