7 de ago. de 2010

Alguns poemas preferidos

Demorei algum tempo até que tivesse saco para ler a "Ode marítima" inteira, de Fernando Pessoa sob o heterônimo Álvaro de Campos. E que coisa. Como alguém pode se lamentar tanto assim de algo que podia, mas nunca lera até então? A "Ode" é fantástica. É comprida -o que explica a falta de saco inicial- mas acaba por prender do início ao fim, e nos sentimos viajando pelos sete mares, sem sequer tirar os pés do cais do porto. Náufragos e ilhas desertas, barris de rum e almirantes, tudo está lá, todas as "coisas navais, velhos brinquedos de sonhos", e, por sobre tudo, Aquela, cujo espírito de bruxa dança, figuradamente, enquanto a carnificina pirata é consumada em alto-mar. Que imagem feminina linda. Cruel e sensual. Vejo então o quanto gosto de mulheres de espírito de bruxa.

Esse cenário marítimo nos leva, com o narrador do poema, ao delírio. Ele sente na carne o que é sofrer, e não só isso, o que é incutir, um ataque pirata. Nessa parte o poema se torna sanguinário e é preciso criar um Deus novo que dê conta disso, não um deus qualquer mas um "Deus dum culto ao contrário". Sentimos, junto com Álvaro de Campos, o que é ser o "pirata-resumo" e a "vítima-síntese", mas só até que o delírio passe: cá estamos de novo, defronte ao cais, olhando, serenos, o navio que se perde no horizonte.

Lendo bem, compreendendo bem o poema ou, para fazer jus ao espírito, afogando-nos bem no poema, vemos que não é longo. Antes, é curto- pena que tenha fim. Mas fica a promessa do horizonte, dos mares todos que, real ou simbolicamente, esperam por desbravamento em nossas vidas.

*

Quando Augusto dos Anjos fala, em "Os doentes", sobre as bruxas negras da derrota, temos vontade de chorar. Quem nunca sentiu, nos momentos de tristeza, de melancolia, nos momentos de fundo do poço, que apenas elas, essas bruxas, o visitavam diariamente? Para mim, que tive não poucos momentos de depressão, esses versos são de uma familiaridade terrível. O "Eu" de Augusto dos Anjos pinga sangue. E que consolo, por paradoxal que seja, essa renovação que sentimos quando, tristes, lemos sobre tristeza. Com a sua melancolia, com o seu sofrimento -que foi real, como sabemos- Augusto nos trouxe, justamente, prazer. É uma alegria termos à mão essa poesia "dark", na falta de termo melhor.

Reparem que aqui também aparecem as "bruxas". Mas são diferentes, a da "Ode marítima" e as d' "Os doentes". Em Pessoa temos a jovem, fogosa, bailando em meio à orgia sanguinária da pirataria. Em Augusto, as "bruxas negras da derrota" imaginamos como decrépitas senhoras, a imagem clássica dos contos de fada, encurvadas e verruga no nariz. Nada sensual, mesmo porque é difícil que o fracasso possa ser sensual.

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O "me enterrem com os trotskistas" de Paulo Leminski é um clássico para mim, que reivindico não o "trotskismo" (conceito vago que sustento não existir, ao menos não no singular) e sim o legado revolucionário de Trotsky. Leminski só poderia, de volta àquela dicotomia da qual tenho falado, se colocar ao lado dos trotskistas. Os binários são anti-poesia. Anárquica, humorada e ácida, só mesmo uma poesia revolucionária permanente.

Leminski é uma poesia urbana. Tem muito de zen aí e o zen evoca imagens rurais, mas isso de atravessar São Paulo de táxi, cinco bares e dez conhaques depois, é coisa de poeta urbano.

*

Falei de zen acima, logo aproveito para encerrar com Bashô. O artista do hai kai é, antes de qualquer coisa, artista. Porque expressar-se liricamente, em três versos, tipo 5-7-5, é coisa árdua. Há o poetrix, mas este é solto em relação ao hai kai. Não que o excesso de regras torne um melhor que outro, pois as regras não trazem qualidade- trazem, isso sim, dificuldade, e acaba que é justo que paguemos tributo justamente pela dificuldade transposta.

Ao plantar arroz, cantam:
Primeiro encontro
Com a poesia.

Se bem que, em Bashô e demais "haikaístas", não notamos esforço algum. Tudo parece transcorrer tranquilo, fluido, como o rio para mar.

Não fosse assim, não seria zen.

4 comentários:

  1. Oi!

    Adorei o post, mostra seu encantamento com esses poemas citados e soa muito vibrante.
    Adorei, principalmente, no que diz respeito à "Ode Marítima". Estudo justo esse poema na dissertação do mestrado e, antes de me decidir por "me afogar" nele, passei pela mesma hesitação descrita por você. Eu li praticamente todos os poemas do Álvaro de Campos e deixei a "Ode Marítima" por último, porque algo na extensão e no tom do poema muito me incomodava. Quando parei para ler, foi aquele choque, aquele escândalo. Senti que tinha perdido um tempo enorme, e que a minha questão (não só acadêmica, digo) estava bem ali.
    Concordo com tudo o que você disse. É um poema que ainda me intriga muito, que ainda é incógnito, de certa forma. Mas, assim há de ser - espero.

    Beijos!!

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  2. Bruna,

    "choque", "escândalo", as palavras são essas mesmas. O poema é pesado, e tem até uma carga erótica -o enfoque no masoquismo- muito forte.

    É brilhante, enfim- como a maioria das coisas que vêm de Pessoa.

    Depois, deixa a gente ler a dissertação ;)

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  3. Deixo! Só ("só") preciso escrevê-la direitinho, rs =)

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