2 de abr. de 2010

Sobre cristianismo e revolução

Em outra postagem tenho falado da necessidade de como, se quisermos chegar à verdade, ou ao mais próximo possível dela, devemos passar por cima de subjetivismos. Deixar que preconceitos pessoais ofusquem o raciocínio é andar em círculos. Não se avança. Nesse sentido, acho muito oportuna a frase de Nietzsche, sobre as convicções serem mais inimigas da verdade que a mentira. Pois o "convicto" não se preocupa com a verdade, tão-somente com a verdade dele. O método dialético, que como marxista eu professo, é radicalmente diferente disso. Analisamos o todo para chegar às partes e vice-versa, cônscios das contradições que permeiam toda estrutura social, toda relação humana, toda atividade humana, que permeiam, enfim, o próprio homem enquanto ser histórico, social e espiritual.

Causa-me estranheza intelectuais negarem, por exemplo, o aspecto revolucionário do cristianismo em seu nascedouro. Partem para o arrolamento dos crimes da Inquisição, da pedofilia da Igreja, da perversão dos Bórgias etc etc. E ficam nisso. Ora, não há organização humana que seja isenta de desvios, por melhor intencionada que seja sua filosofia. Homens estão situados num contexto histórico-material, e como tal fazem sua História, não livremente (e sim sob as circunstâncias legadas e transmitidas do passado, diz Marx no 18 Brumário), mas fazem. No erro e no acerto. Em qualquer caso, o cristianismo não se reduz à Igreja Católica.

Negar o aspecto revolucionário do cristianismo em seus primórdios é negar a História. Uma religião que, sob os Césares, apresentava o "Rei dos Judeus" (-tu o disseste, Caifás). "A César o que é de César....", negando o próprio caráter divino do imperador. Uma religião que nos colocava a todos como filhos do mesmo Deus, seja gentio, judeu, escravo ou livre, e que horrorizava o sacerdote e fariseus do Templo. Que blasfêmia, milagres aos sábados! Como, comer com prostitutas e gentios?! Este filho de carpinteiro está possesso: vamos apedrejá-lo.

É compreensível que tal "heresia" passe a ser vista, gradualmente, como um perigo ao próprio status quo. Como diz  Mario Curtis Giordani, apud "História de Roma":
"Tácito em seus Anais menciona a atitude tomada por Nero contra os cristãos para fazer cessar o rumor popular que o acusava de haver incendiado Roma. O historiador informa-nos sobre o fundador da seita. 'O fundador da seita, Cristo, fora condenado à morte pelo procurador Pôncio Pilatos no reinado de Tibério. Essa perigosa superstição, um momento detida, em seguida se espalhou, não só na Judeia, origem desse mal, mas também em Roma para onde confluem de toda a parte e encontram acolhida todas as coisas as mais grosseiras e vergonhosas'".
Um "mal", uma "perigosa superstição"...Como negar o caráter subversivo do cristianismo?

Em outra passagem: 
"A pregação do cristianismo nas comunidades judaicas, difundidas pelo Império, provocou, em breve, sérias dissensões entre os que permaneciam fieis à sinagoga e os neoconvertidos à nova religião. Essas dissensões acabaram por envolver a própria autoridade romana".
O pano de fundo é sempre material, como nos ensinou Marx. O cristianismo, ao subverter conceitos do Império, ameaçava as próprias instituições. Daí a perseguição, em uma cultura tão tolerante para as demais religiões como a romana. O cristianismo não podia ser tolerado porque subvertia.

*

Sobre a importâcia do cristianismo nos costumes romanos, sugiro o "Curso de Direito Romano" de Abelardo Lobo- mostra como institutos como a escravidão, família, propriedade e a situação das mulheres foram influenciados:
"As ideias cristãs chegaram a Roma exatamente quando se operava a fusão do Direito com a Filosofia, mas, em vez de impedir esta fusão, ajudou-a para abrandar mais ainda suas regras, invocando para este fim, não a natureza física e sim a natureza humana. Foi devido a essa participação das ideias cristãs na evolução do Direito, participação verificada indiretamente por efeito da reação sobre os costumes e, depois, por uma espécie de espiritualização dos grandes dogmas da doutrina, que os imperadores nas suas constituições e os pretores nos seus editos, deixavam a natureza abstrata do homem, para atender, preferentemente, a natureza concreta da sociedade".

*

Não se pode negar o caráter revolucionário do cristianismo em seus primeiros séculos, portanto. Não quero dizer, contudo, que o cristianismo seja revolucionário, ou que seja contrarrevolucionário; ele pode ser um ou outro, conforme os homens assim ajam, assim o interpretem, assim o apliquem.

Por um motivo simples: ao cristianismo, como qualquer outro fenômeno de superestrutura, não pode ser dado um caráter eterno, antes, é condicionado pelas relações de base existentes. Dessa forma, repito a fala de Garaudy, sobre a religião poder ser ópio, ou fermento, conforme assim a façam os homens.

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Não sou cristão. Mas, caso fosse, meu Cristo seria este:
"Há muito tempo, viveu um Homem que foi crucificado por ter muito amado e ser muito digno de amor.

E é estranho relatar que o encontrei ontem três vezes.

Na primeira vez, estava pedindo a um policial que não levasse uma prostituta à prisão; na segunda, estava bebendo vinho com um fora-da-lei; e na terceira vez, estava lutando aos murros com um vendedor, dentro de uma igreja".
De Khalil Gibran, "Areia e Espuma".

Ou o da imagem do post, o "Cristo Guerrilheiro" do cubano Alfredo Roostgard.

Dedico esta postagem ao amigo Velho Marujo, que, cristão, está atento às questões sociais.

7 comentários:

  1. Muito bem explanado o seu ponto de vista. Parabéns!

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  2. Caro amigo,

    Estive fora deste mundo por 4 longos meses, mas retornei a este meu compulsivo, porém virtuoso vicio.

    Quanto ao que escrevestes, sim, concordo plenamente, o caráter subversivo do cristianismo é fato inegável, e a que a perseguição deu-se por motivos financeiramente políticos, mais indissolúveis ainda. Cristo, em sua essência, pregou apenas subversões, a ensinar que todos são iguais perante um mesmo Deus, e que ética significaria tratar um ao outro como a si mesmo. Ora, tratar um ao outro como a si mesmo vai totalmente de encontro com a idéia de autoritarismo e poder que os impérios (romano ou capitalista) defendem.

    Como protestante/cristão acho que perdemos muito desse caráter e dessa essência, e sinto muita falta de tal postura, mas acredito não estar nada perdido e que ainda restam homens e mulheres (cristãos ou não), que permanecem no mesmo princípio por Cristo deixado.

    Obrigado pela citação, realmente este texto tem em pouquíssimas palavras a base do que acredito ser o cristianismo e quais as posturas que todo cristão deveria ter, pois Jesus em momento algum prometeu nos tirar do mundo, mas guardar-nos do mal. Sendo assim, não devemos nos afastar dos problemas sociais, mas incorporá-los aos nossos discursos, e somar a fé, com atitudes que realmente demonstrem que amamos não apenas a Deus, mas aos seus filhos como um todo.

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  3. Ah! Quase me esqueço. Está frase é perfeita!

    "Dessa forma, repito a fala de Garaudy, sobre a religião poder ser ópio, ou fermento, conforme assim a façam os homens."

    A religião tem mesmo o poder, de ser ópio ou fermento. Apenas sinto saudades de quem fermente essa massa (me incluo dentre estes).

    Trabalhos como o seu, estes pequenos manifestos que fazemos, são insignificantes aos olhos dos poderosos, mas passos gigantescos para os desprezados.

    Ainda têm poucos que insistem em fermentar, resta-nos mais coragem para fazer crescer a massa. Mas, não se faz em vão, quero, creio, e luto para disseminar um Cristianismo que retorne a sua base e que volte a subverter a sociedade em pró de conceitos mais humanos, mais dignos e menos individuais.

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  4. Caro Tejo, o cristianismo pode ou não ser revolucionário, verdade. Mas a mensagem de Cristo é certamente revolucionária. Foi pelo fato de a burguesia ter se tornado "cristã" que adulteraram o discurso de Jesus Cristo, dos apóstolos edos Santos Padres.

    Eu sou cristão ortdoxo, em questão doutrinária aceito tudo, mas na ordem da práxis sei que o cristianismo é burguês.

    Não sei se lhe interessa mas publiquei alguma coisa dos Padres da Igreja a esse respeito.

    Entrevista com São Basílio: http://tinyurl.com/2an9hoh
    e segunda parte da entrevista: http://tinyurl.com/24s6ot9

    Sem mais abraços.

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  5. Com certeza foi uma mensagem revolucionária (ao menos subversiva). E nem é preciso adentrar o mérito teológico, e sim mesmo a repercussão social, como Mario Curtis diz.

    Vi o "Diário de um Bobo da Corte", muito bem sacado a foice com a cruz.

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  6. Caro J.L.Tejo,

    Parabéns pelo texto lúcido, e desprovido de preconceito. Gostaria de publicá-lo em meu blog, caso não se incomode.

    Já estou seguindo seu blog. Aproveito para convidar-lhe a conhecer o meu blog, e se desejar também segui-lo, será um prazer.

    Seus comentários também serão sempre bem-vindos lá.

    www.hermesfernandes.com

    Conto com você!

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  7. Já estou seguindo, Hermes. Como pode ver, sou interessado nesse assunto, o aspecto libertador (politicamente falando) da religião.

    E claro, pode divulgar o texto, é um prazer.

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