É muito comum nos depararmos com marxistas que, não obstante tanto falarem (corretamente) em estudo, em ciência, em dialética, esquecem uma premissa elementar do pensamento científico: ao se estudar um fato, deve-se partir de uma posição neutra diante desse fato estudado. Afinal, se quer verificar um FATO- ou o fato ocorreu ou não ocorreu, não há "meio-fato". E, se ocorreu (ou não ocorreu), ocorreu (ou não ocorreu) independentemente da vontade ou da fé.
Os companheiros que cito, partem, ao contrário, da premissa de que dado fato é mentira porque veio de fontes burguesas.
Há dois equívocos aí.
O primeiro é objetivo: esquece-se que não há conhecimento que não esteja vinculado a relações de base. Como produção cultural, portanto superestrutura, há inflexões materiais que sempre irão incidir. Isso é inevitável, "a história de toda a sociedade até aqui é a história de lutas de classes" (Manifesto). Não há ciência que não esteja situada no pano de fundo material. Desprezar, refutar a ciência, porque veio da burguesia, é ser idealista, porque se estaria querendo ciência que, num sistema de produção capitalista, não fosse afetada por esse sistema. Idealismo hegeliano e não materialismo marxista.
Não entender isso, é cair no campo do obscurantismo "stalinista", que atacava a "ciência burguesa", como se a Física, a Química, a Biologia, deixassem de ser a Física "correta", a Química "correta", a Biologia "correta" por serem estudadas e ensinadas por cientistas burgueses.
Ora, qualquer cientista, qualquer ser humano, está ligado a uma classe. Jogaremos fora tudo que não foi produzido por cientistas "proletários"? Argumentum ad absurdum, retrocederíamos à Idade da Pedra.
Logo, o que é dito sobre determinado personagem/ episódio histórico ou é falso, ou verdadeiro, não por causa da fonte "burguesa" (porque TODA fonte tem uma origem de classe), e sim pela falsidade, ou veracidade, do que é dito.
O segundo equívoco é subjetivo: a História, por ser ciência social (e como tal, tem até seu rótulo de "ciência" posto em xeque), é repleta de meandros, sutilezas, e dada a mistificações. Homero escreveu a Ilíada e era grego; não "por acaso" os gregos eram os mais fortes, os mais belos, os mais heróicos e os mais supimpas da Guerra de Tróia.
É no campo das ciências sociais/ humanas, que os influxos de classe (materiais) assomam com mais intensidade. Nesse sentido, o cientista social não é neutro, há toda uma gama de fatores (inclusive psicológicos, inconscientes) que irão interferir na sua capacidade de análise concreta da realidade.
Agora, se isso é válido para o pesquisador burguês, que é influencidado por suas ideias burguesas (mesmo inconscientemente) isso é válido TAMBÉM para o pesquisador comunista, que acaba sendo, ele TAMBÉM, influenciado por suas aspirações, desejos, vontades. Tanto quanto o pesquisador burguês, ele acaba falseando -mesmo que não queira- a realidade. Com um agravante: em nosso caso (o caso dos comunistas), isso é extremamente mais reprovável. Porque o nosso método é superior ao método da burguesia. O nosso método é o materialista dialético, rico e adogmático. E o método dialético não admite falsificações, não admite que o CRER se sobreponha ao SER.
Logo, é inadmissível que um comunista enverede pelo caminho do subjetivismo, deixando que opções e convicções pessoais se sobreponham à análise concreta da realidade.
É por isso que a distensão "Trotsky x Stálin" me incomoda tanto. Porque reflete justamente esse desvio, o da proeminência do "achar", do "preferir", sobre o "ser".
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Resumindo, para facilitar, a postura correta ao estudar um fato histórico:
> Nenhum fato deve ser rejeitado a priori, tão-somente por ter como fonte uma fonte burguesa. A natureza de classe da fonte não pode servir, isoladamente, como motivo para seu repúdio, porque, a) não há fonte que não tenha origem de classe (materialismo histórico), b) a ocorrência do fato é dado objetivo, verificável, caso contrário não é fato.
> Não se deve deixar que inclinações e opiniões íntimas interfiram na apuração concreta do fato. Se algo aconteceu (ou não aconteceu), aconteceu (ou não aconteceu) independentemente de minha vontade/ desejo. As valorações subjetivas são normais (e humanas!), mas apenas na fase subsequente (Ex.: "O fato ocorreu [primeiro momento]. O que eu penso desse fato? [segundo momento]").
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É isso ou cair nos velhos erros.
Muito interessante o texto, parabéns.
ResponderExcluirDeixo um pequeno comentário em relação as fontes e a História.
Na História, como em qualquer ciência, só podemos afirmar que algo é verdadeiro se tivermos provas, a noção de fonte tem sofrido transformações, se ampliando, mas a noção de documento é a mesma.
O método histórico, a crítica histórica, aplica técnicas diferentes em relação aos diferentes tipos de fontes com que trabalha, mas em relação ao estudo dos documentos, essas técnicas são análogas: a sua busca, a sua verificação, em relação a sua autenticidade e credibilidade, a sua interpretação e a síntese.
Não existe historiador neutro, imparcial, quando analisamos um fato histórico, estamos dando a nossa interpretação acerca desse fato, que pode ser influenciada pela ideologia do historiador, por exemplo, mas nos cabe, seja como leitores, pesquisadores, também fazer uma análise crítica acerca do trabalho do historiador, por isso é importante conhecê-lo, conhecer sua ideologia, saber a que Escola ele pertence. Mas para a veracidade ser conferida ao seu trabalho, é necessário que ele esteja baseado em fontes, documentos, que podem ser de diversos tipos, mas é importante que os documentos passem pela crítica externa, de autenticidade, a fim de determinar se eles são verdadeiros ou falsos.
O problema é quando a ideologia (Escola etc.) passa por cima da própria veracidade do fato. Como você disse, não há neutralidade na análise do fato, mas o fato ele próprio deve ser real, caso contrário nem fato seria.
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