27 de ago. de 2010

Nos portões do cemitério, com The Smiths

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"Cemetry gates" me remete a 1996, que foi quando ouvi "The Queen is dead" pela primeira vez. Comecei a ouvir os 80's não propriamente nos 80's, mas sim com quase uma década de atraso. Não faz mal: cá estamos nós, antes de irmos para o Empório, em Ipanema, ouvindo The Smiths derramando aquela poesia toda. Poesia mesmo: a letra, uma das mais líricas que já vi, é nada mais nada menos que um passeio, portas do cemitério adentro, por entre túmulos de antigos poetas. A voz peculiar de Morrissey (que vulgarmente chamamos de "estar com um ovo na boca") carrega no "Waaalllde", referência ao seu Oscar querido, ao passo que também Keats e Yeats aparecem, em espírito, pelo menos.

Oscar Wilde já é citado no blog, em uma postagem sobre seu "A alma do homem sob o socialismo". Era não apenas poeta e dramaturgo, mas também um sujeito politizado, como se vê; terminou seus dias humilhado e degradado, condenado que fora por sodomia, crime na Inglaterra vitoriana. William Butler Yeats (1865- 1939) foi um poeta irlandês, e John Keats (1795- 1821), inglês, ambos referências de Morrissey. As letras dos Smiths são sempre recheadas de referências literárias ou históricas, como por exemplo Joana D'Arc em "Big mouth strikes again" e Antônio e Cleópatra em "Some girls are bigger than others". Música culta e pop ao mesmo tempo, portanto, diferente das banalidades dos últimos 20 anos.

20 de ago. de 2010

Um esboço teológico: Deus e nós mesmos

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Uma coisa interessante é que, seja pelo viés metafísico seja pelo materialista, não deveríamos nunca estar nos aborrecendo, ou aflitos, com o que quer que fosse. Se algo de ruim nos acontece, é a vontade de Deus. Deus sabe o que faz, logo ficamos serenos e deixamos o problema transcorrer confiantes. Mas, se Deus não existe, tampouco há que se esquentar a cabeça. Algo de ruim nos aconteceu? Que bobagem, amanhã morreremos todos, vale a pena esquentar com isso? A vida acaba e com ela o sofrimento. Crentes e ateus unidos na convicção de que não vale a pena sofrer.

Falar é fácil. Sofrer faz parte de estarmos vivos. A vida é, com o perdão da redundância, viva, e almejamos, desejamos, anelamos, aspiramos, algo. Algo qualquer. E é bom que seja assim, não querer é estar morto, é estar estagnado, conforme falei no post, Fernando Pessoa (aliás, Alberto Caeiro) como imagem, "O não querer é contrarrevolucionário". O grande segredo talvez seja não "não querer", e sim querer sem sofrer. Seria a solução dialética do problema, o "querer" de um lado, como elemento impulsionador da vida, combinado com a ausência de sofrimento por tal querer, pelo contrário, combinado com a alegria por termos ânsia, vontade. Ficamos com o que é bom, deixando de lado o inconveniente no "querer". Fazemos assim do querer uma fonte de alegria, pois se querer é estar vivo, temos vida, e vida em abundância (copyright João 10:10).

14 de ago. de 2010

Perfumes

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Exupéry diz, em "Terra dos Homens", obra da qual já falei (aqui e aqui) que o cheiro de mar, para quem o sentiu uma única vez, não pode mais ser esquecido. Não pego o livro há um bom tempo, mas a ideia passada é exatamente essa. Eu, que passei a infância e adolescência em um bairro litorâneo, Copacabana, sei exatamente o que é isso: o quanto o cheiro do mar é marcante, é indelével. Um perfume salgado que remete a amplidões, que traz consigo visões de pequenos barcos de pesca da Colônia de Pescadores, no Posto 6. Onde há o pequeno santuário de Nossa Senhora, de manto azul- azul como esse mar que, quando à noite passeamos pela areia, aspiramos. O cheiro não vem sozinho, como se vê. Há a sensação da areia molhada sob os pés e o barulho do mar. O mar, pelo mero fato de existir, atinge-nos todos os sentidos.

Nas Barcas, a caminho de Niterói, também há esse cheiro. Mas já conspurcado, já vilipendiado, como um santuário profanado. O que é natural, em outros lugares, na Baía de Guanabara é poluído, toda a carga de dejetos que nós, seres humanos, reiteradamente despejamos sobre a natureza. E ei-la fétida, águas macilentas, amareladas. Mas ainda assim águas, ainda assim mar: sofre, mas não é avara, a natureza. Por sobre todo o fedor dos detritos, ainda nos dá, sutil que seja, o mesmo perfume de mar. E tornamos a nos sentir em casa, mas em casa num sentido mais profundo.

7 de ago. de 2010

Alguns poemas preferidos

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Demorei algum tempo até que tivesse saco para ler a "Ode marítima" inteira, de Fernando Pessoa sob o heterônimo Álvaro de Campos. E que coisa. Como alguém pode se lamentar tanto assim de algo que podia, mas nunca lera até então? A "Ode" é fantástica. É comprida -o que explica a falta de saco inicial- mas acaba por prender do início ao fim, e nos sentimos viajando pelos sete mares, sem sequer tirar os pés do cais do porto. Náufragos e ilhas desertas, barris de rum e almirantes, tudo está lá, todas as "coisas navais, velhos brinquedos de sonhos", e, por sobre tudo, Aquela, cujo espírito de bruxa dança, figuradamente, enquanto a carnificina pirata é consumada em alto-mar. Que imagem feminina linda. Cruel e sensual. Vejo então o quanto gosto de mulheres de espírito de bruxa.

Esse cenário marítimo nos leva, com o narrador do poema, ao delírio. Ele sente na carne o que é sofrer, e não só isso, o que é incutir, um ataque pirata. Nessa parte o poema se torna sanguinário e é preciso criar um Deus novo que dê conta disso, não um deus qualquer mas um "Deus dum culto ao contrário". Sentimos, junto com Álvaro de Campos, o que é ser o "pirata-resumo" e a "vítima-síntese", mas só até que o delírio passe: cá estamos de novo, defronte ao cais, olhando, serenos, o navio que se perde no horizonte.

2 de ago. de 2010

Eleições 2010: o PCB e a construção do Poder Popular

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Uma coisa que me incomoda, em época de eleições, é a grande quantidade de pessoas que passam alheias ao momento. São a encarnação do "analfabeto político" de Brecht, aquele que se orgulha de não estar interessado em política, sem saber, estúpido que é, que toda vida em sociedade depende justamente das decisões políticas- do preço do remédio ao da comida.

Somos homens terrenos, situados em um contexto material. Não é preciso negar a espiritualidade ou a religião para compreender esse fato, o da nossa imersão na realidade física. E se estamos situados no aqui e no agora -e não alhures no limbo- é aqui, desde já, que devemos buscar nossa felicidade, e não protelá-la para um futuro nebuloso. A religião que perde isso de vista é a religião criticada por Marx, a do "ópio do povo", o "soluço da criatura oprimida" que se contenta com a flor imaginária, alheio à flor real que quer desabrochar e espalhar seu perfume. A Teologia da Libertação entendeu isso. A libertação, em sentido teológico, não prescinde da libertação material, concreta, do cotidiano.

As eleições, mais precisamente, a importância da participação ativa nas eleições está nesse contexto, o da busca consciente por uma melhor sociedade. É nesse momento, mais do que nunca, que se fala em propostas, que se fala em sugestões, em programas, em rumos para a vida do país- rumos esses que não só nos influenciarão como às gerações seguintes, em maior ou menor escala. Há que se manter alheio a isso? Evidentemente que não.