15 de dez. de 2010

Do velho esporte bretão


Há coisas que exorbitam sua esfera de origem. O exemplo clássico para mim é o futebol. A princípio um jogo, um passatempo, o futebol acaba por envolver uma gama enorme de conceitos sociais. Aprende-se por exemplo disciplina, autocontrole, capacidade de resistir à frustração, fairplay, espírito de grupo etc. etc. O futebol -e qualquer esporte- não é portanto apenas jogo, apenas lazer, e sim uma poderosa ferramenta de formação de caráter. Formação ou deformação, claro: se o que é passado à garotada for a visão distorcida do esporte, do ganhar a qualquer custo, do egoísmo e do vilipêndio ao adversário. Mas vejamos as coisas apenas por sua ótica positiva. Por exemplo, o superego não está no futebol? Claro que está, na figura do juiz, "o homem do apito", reprimindo o que não pode, castigando os excessos. Deixo para os sociólogos e psicólogos, mas será que não poucos garotos, largados, abandonados à própria sorte, não aprenderam a respeitar a figura da "autoridade" (momentaneamente que seja) através de um árbitro de futebol? Assim como no futebol, os excessos na vida são castigados.

E as novelas da Globo? Sou um crítico contumaz: considero o universo da frivolidade e da banalidade. Mas ocorre o seguinte: é entretenimento de massa. As pessoas gostam daquilo. Por que não aceitar que muita gente se instruiu e aprendeu via novelas da Globo? As campanhas da Glória Perez, por exemplo, geralmente trazem temas modernos, em voga- drogas, deficiências mentais, barrigas de aluguel, clonagem humana. Por que não aproveitar esse potencial, e utilizar essa ferramenta? Todos têm televisão em casa. O alcance de um instrumento de massas desse é formidável. Por isso que já não sou a favor do fim das telenovelas. Sou a favor é da sua maior qualidade e de sua função social.

Ora. Pode-se dizer, ainda que isso não seja consenso, que a CLT se inseriu no contexto fascista de cooptação da classe trabalhadora, durante a ditadura varguista. Não por acaso foi inspirada, também sem consenso, na "Carta del Lavoro" de Mussolini. Mas: não é porque direitos trabalhistas foram positivados em uma ambiência histórica e política em que borbulhava o fascismo é que deixaremos de aproveitá-los. É a velha história, a de usar as armas do sistema contra ele próprio. A Globo é direita pura -pode não ser fascista, mas já teve episódios fascistas, como o endosso ao golpe militar dos anos 60- mas não é por causa disso que, necessariamente, tudo que venha dela será ruim. O binário, aquele que "simplifica a realidade para não cair em tentação" (Trotsky), pode até dizer que sim. Mas o binário é um sujeito equivocado até a raiz do cabelo. A Globo, sem deixar de ser direita pura (às vezes fascista), pode também se prestar a desempenhar função social.

(Aliás, os meios de comunicação são concessões públicas; deveriam SEMPRE desempenhar função social. Mas na prática não funciona assim, só que isso é assunto pra outro post)

Comecei falando dos benefícios do futebol, que extrapolam o mero jogo. Isso tudo no aspecto puramente subjetivo, pessoal; porque, se formos falar também da influência do futebol na economia, daí atingiremos patamares gigantescos. Do catador de latinhas de cerveja na saída dos estádios à CBF, todos, de um jeito ou de outro, ganham algo. Uns mais outros menos, naturalmente, como é de praxe na sociedade de classes. Mas o catador de latinhas, o ambulante do cachorro-quente, o artesão e vendedor de bandeiras e faixas, o gandula, o bandeirinha, o massagista, o roupeiro etc. etc. etc., quanta gente, meu deus, precisa do futebol. As cifras são gigantescas: principalmente colocando no bolo os megaastros com seus salários turbinados. Quem quiser ter uma noção dos fantastiquilhões em jogo (com trocadilho), olhe este sítio. Acho esses valores obscenos. Mas essa é a sociedade de classes. Não faço apologia do esporte capitalista nem quero melhorá-lo; quero é um esporte livre do capitalismo, mas isso ainda não é para agora.

E meu velho amigo Alexandre resmungava, "não tenho time, eles tão cheios de dinheiro e não ligam a mínima". Alexandre estava certo. Vivia às voltas com suas paranóias, mais imaginárias que reais, mas nesse ponto estava certo. Não me lembro bem a primeira vez em que ouvi ele dizer isso: acho que foi, anos atrás, durante um campeonato carioca, Fluminense versus Americano de Campos. Eu havia estendido na varanda de casa, tremeluzente, frágil (pela qualidade do material, jamais pelo que representa), uma bandeira do Tricolor. Ele torceu o nariz e soltou a pérola, acho que foi isso. Mas como eu era o anfitrião, teve que aturar pacientemente o desenrolar da partida, vencida pelo Fluzão, 5 a 1 se não me engano. Daí emendamos, um pouco mais tarde, com o legendário Garage da Praça da Bandeira, antigo reduto hardcore da cidade.

Mas, nisso de futebol, Alexandre está correto. "Eles" realmente estão enchendo as burras, enquanto nós torcedores nada obtemos. Mas é mais complexo que isso. Quando as pessoas criticam o futebol, então, penso na crítica à religião. Como nesta, as pessoas se apegam a um aspecto, a um enfoque: e o ópio fica cristalizado. Ora, nada é eternamente ópio, ser ópio ou fermento vai depender do contexto. Futebol não é apenas os milhões de dólares do Ronaldo "Fenômeno" (sic). É também os milhões de garotos tirados da marginalidade (o próprio Ronaldo, quem pode dizer?). Isso é sociedade de classes. O que tivermos às mãos, devemos utilizar.

E mesmo para além de todo papel do futebol, na economia, na vida social: o torcedor, ganha, sim, e muito. Não em dinheiro. Já fala o bordão, "coisas que o dinheiro não compra". A emoção de uma partida só o torcedor pode explicar. Um Alexandre jamais compreenderia. Durante noventa minutos sentimos do ódio à glória, passando pela apreensão e entusiasmo. Tudo junto. Como explicar para o Alexandre o gol marcado aos 40 do segundo tempo? O que vem aí é uma descarga de pura energia, palavrões e socos no ar, punhos crispados e urros.

Para quem vê de fora é irracional.

E talvez seja: mas por que diabos precisamos agir sempre com a razão? A emoção precisa aflorar também. O futebol, assim, serve como uma válvula de escape inofensiva (ao menos deveria ser inofensiva: há os que matam por futebol, mas este post, falei acima, busca apenas a ótica positiva). Às vezes penso, mas também isso eu deixo para os psicólogos e sociólogos, que a vida moderna castrou, de certo modo, o ser humano. Antes havia a luta pela sobrevivência, a caça e as guerras. Ninguém pode dizer que não era uma vida mais intensa, comparada ao cotidiano modorrento de hoje. Talvez o futebol, nesse sentido, supra isso, por noventa minutos que sejam, nossa necessidade de emoção, de movimento, de vida.

*

Este post é só uma desculpa para gritar o seguinte: FLUZÃO CAMPEÃO BRASILEIRO DE 2010!!!!!


Fica aqui a homenagem ao "Time de Guerreiros" e a todos que participaram da saga. Ano que vem tem mais.

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