Hoje senti vontade de falar com Ogum. No início do ano passado, eu já havia escrito um post sobre sua dança. Agora sinto o Orixá de novo dançando. Desta vez na minha mente, desta vez no espaço-tempo, não mais um menino mirrado na praia de Copacabana, mas um soldado romano de capa vermelha, trajes rotos, mãos sujas de poeira e sangue. Mas o gládio brilha, reluzindo sob um sol imaginário, Jorge da Capadócia, cujo capacete também reluz, Jorge da Capadócia, dançando diante do dragão recém-vencido. Jorge dança, e o universo se torna expressão de sua dança, Jorge, que é Ogum, portanto o movimento, portanto...a dialética.
Igreja de Nossa Senhora da Lampadosa, a poucos quarteirões de distância do escritório. Naquele burburinho da Praça Tiradentes, em meio a ônibus e comércio da Avenida Passos, em meio a garotas de programa da esquina (sim, mesmo à tarde já se pode encontrá-las), em meio ao calor do horário de verão, lá está a Igreja, e é lá que, quando sinto vontade, encontro Ogum. Antes, Santo Expedito. Expeditus, soldado-lenda, santo-mito (redundância?), indicando que o momento é hoje (hodie) e não amanhã (cras). A ave negra, o corvo demoníaco, repete "cras! cras!" em nossos ouvidos, mas o santo o mantém aprisionado, sob seus pés, dominado. O hoje venceu o amanhã. Não é preciso ser católico, ou mesmo religioso, para captar o que esse romano de lenda quer nos passar, nos ensinar. O ateu "praticante" (coisa ridícula, porque o ateísmo acaba funcionando ele próprio de crença), em sua aversão, em seu pensamento binário acaba por deixar escapar essas lições, porque têm um fundo religioso. Mas tire o fundo religioso e a lição se mantém! O maior dos ateus, não fosse binário, poderia aprender com Expedito. Poderia, quando visse a imagem de Expedito -como estou vendo neste momento, enorme no altar da Igreja- identificar no corvo pisoteado todas as aspirações, todos os sonhos que, por medo e preguiça, deixamos para amanhã. E poderia ouvir o "hodie!", hoje, forte da boca do santo, convidando para a práxis já. Como ouço agora. Não existindo, Expedito nos ensina mais que muitos "gurus" reais.
Mas é de outro soldado romano que vim falar. Jorge da Capadócia está lá, bem o sei, no local reservado da Igreja, ladeado por São Benedito. E por São Jerônimo e São Lázaro, quero dizer, Xangô e Omulu. O mito -a lição que nos traz- tem vários nomes. Ao chamá-los conforme os chamariam nossos ancestrais negros (e reivindico a herança africana, em meu sangue, em minha alma) homenageio a todos que, pela dor e sofrimento, compuseram o País. Não sou patriota, já disse aqui, meu apego não é pelo país, mas pelas pessoas, pelo ser humano. Assim, a África -toda ela, do magreb ao Cabo da Boa Esperança- é tão minha pátria quanto o Brasil o é (até mais, quem pode dizer?) de modo que homenageando os antigos escravos homenageio meus próprios compatriotas. E que bons mitos são Xangô e Omulu. A justiça, a erudição, que associam, tanto quanto a figura do leão, o Orixá africano a São Jerônimo, o jurista tradutor da bíblia, a saúde, a harmonia física, ligando -através dos séculos e da distância geográfica- o mito de Lázaro e o de Omulu. Tudo se interliga, eu penso cá na minha. O "imaginário criador dos povos", como diz Garaudy, é riquíssimo e gosta de recontar, de diversas formas pelo globo, a mesma história.
E agora estou aqui, contemplando a imagem de guerreiro, cavalo branco majestoso, lança de ferro goela adentro do dragão. A capa é vermelha: será coincidência? Porque vermelho é a cor da revolução, é a cor do movimento. O vermelho comunista adorna as costas de São Jorge, o dragão, talvez, analogia para o monstro capitalista. E me lembro, neste momento, da gravura da época da guerra civil russa, Trotsky caricaturado como São Jorge. Tudo se interliga, a voz interna torna a dizer...São Jorge Guerreiro, São Jorge Revolucionário: a lança é instrumento da luta de classes.
Esse é Ogum pra mim. Há que ser religioso, para adotá-lo assim na vida? O exemplo, a lição, o símbolo prescinde de crença. Já falei acima: muitas vezes o mito ensina melhor que professores "reais". Roger Garaudy também diz nesse sentido. Para ele, Heitor de Tróia é uma figura mais presente que, digamos, Júlio César; pelo exemplo que aquele, mito, deixou, em comparação com este, gente de carne e osso.
Faz silêncio na Igreja. Saúdo Jorge, mas antes toco a capa vermelha, rogando em silêncio que a força que impulsiona, a força revolucionária, esteja sempre atuante. E tem que estar: cessando ela, cessa a vida.
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Mudando de assunto. A blogosfera ganhou um novo reforço: o blog da Emanuella Freitas, Depois da curva, que desde já indico. Aproveito para agradecer, ainda, ao companheiro Breno Corrêa, pela citação na postagem mais recente do excelente Ensaios libertários, que abrilhanta minha seção de blogs amigos.
Eu tinha falado, com o Erik Barros, do parado O Marca texto (atualiza isso, rapaz!) que a próxima postagem seria sobre a eleição de Dilma (e todas as implicações envolvidas: a vitória do bonapartismo, o aprofundamento das contrarreformas neoliberais, como a trabalhista, etc.) mas senti, realmente, essa vontade de falar com Ogum. Dilma fica pra próxima, com certeza.
Sua postagem foi uma verdadeira aula de arquétipos. gosto de Jung porque ele cvomopsicanalista que era trabalhava com arquétipos e parece que existem arquétipos universais, creio eu que a luta é uma delas. Parabéns Tejo.
ResponderExcluirTe saúdo, guerreiro! A besta que se cuide.
ResponderExcluirA "luta" (o impulso pra frente, a coragem, a mudança) pode receber vários nomes. Ogum entre os yorubás, Marte romano e Ares na Grécia etc.
ResponderExcluirEntendo que o nome não importa -nem a crença na real existência da entidade, de Deus ou deuses- mas sim o exemplo, a lição, a metáfora que devemos trazer para nossa vida.
Camarada, se me permite.
ResponderExcluirhttp://asduasemeia.blogspot.com
Estou de volta.
Abraço.
"Expeditus, soldado-lenda, santo-mito (redundância?), indicando que o momento é hoje (hodie) e não amanhã (cras). A ave negra, o corvo demoníaco, repete "cras! cras!" em nossos ouvidos, mas o santo o mantém aprisionado, sob seus pés, dominado. O hoje venceu o amanhã." Parece que deixei o 'cras, cras' falar muito aos meus ouvidos. Preciso vestir a roupa vermelha da revolução.
ResponderExcluirMe sinto lisonjeada sendo indicada no teu blog (o meu nem chega perto do seu kkkk), obrigada pela indicação meu amigo.
Não fosse esta visita, não veria assim as figuras citadas. Foi mesmo uma ótima nova visão.
ResponderExcluirBjs, bom fim d semana.
Amigo, concordo q a violência não deveria nunca ser um recurso ou quando muito o último, mas em alguns momentos e com algumas pessoas ... rsrs