Sento na cama, ainda no escuro, conjeturando. Seria o ventilador, que, mesmo em dias frios, tenho o hábito de deixar ligado? Seriam cupins no armário? Seria...seria...? As hipóteses iam sendo descartadas conforme surgiam. Restava, ah, não, não pode ser, não o sobrenatural. A mais implausível das possibilidades. Mas implausível hoje. Houve tempo de temor supersticioso, de crucifixos e dente de alho no bolso, tempos de sinal-da-cruz e pai-nossos. Mas é passado, ficou para trás nas névoas da minha Idade Média particular.
(A Idade Média...Por que costumamos associá-la ao obscurantismo? Foi a época da opressão da Igreja, é verdade, mas não foi também a época dos cavaleiros e da Excalibur, e das princesas e dragões? Por que obscurantismo, se Merlin era mais sábio que qualquer dos homens de ciência de hoje? Mas insistimos em manchar sua reputação. "Idade das trevas", costumamos chamar, "trevas", a era de Marco Polo e de Dante Alighieri. Difamação. E lendo minha fala no parágrafo acima, vejo que me juntei ao rol dos difamadores).
Levanto e rondo o quarto, farejando como um sabujo. De onde diabos vem o barulho? Daí percebo: desde que me levantei, o barulho cessou. É um enigma. Torno a deitar. Barulho. Levanto. Silêncio. Cai a ficha: é a própria cama, rangendo, ao peso do meu corpo. É um móvel velho, com o estrado já rachado. Embaixo mantenho uma espécie de suporte, à base de tijolos, para que a parte quebrada da estrutura da cama não desabe. Justamente esse suporte saíra do lugar, e eis os ruídos que me tiraram da minha praça da infância. Mais um pouco, quem sabe, a cama teria desabado e levado-me consigo ao chão. Pois bem, devolvo o suporte ao lugar e torno a deitar.
O Rio de Janeiro é uma cidade quente, o que particularmente considero uma pena. Mas eventualmente faz frio, muito frio, e essa semana tem sido assim. Volto para a cama e me embrulho no meu cobertor, na minha pele de urso, como um viking do século X. Lá fora é o breu glacial, de Odin e de Thor.
Barulho? O único que temo é o do despertador, logo mais.
O enigma desperta de tudo: foi-se até a Idade Média nesse trajeo pelo descobrir o que era o tal barulho. Podia ser tudo. Foi tudo enquanto perdurou o enigma. Até que se descobre que é apenas um apoio da cama fora de seu lugar, que é apenas o corriqueiro nos chamando a atenção.
ResponderExcluirÉ tão bom permanecer nas esferas do enigma... é onde chegamos ao século X, viking. E esquecemos do despertador...
Sua escrita é muito boa! =)
Eu admiro teu jeito de escrever (já devo ter dito isso rsrsrs).
ResponderExcluirTambém tenho essa mania de ligar o ventilador mesmo em tempo frio. Ele faz um barulho que não atrapalha o sono, como esse que atrapalhou o teu e te fez viajar.
Saudações Comunistas, Tejo! Bom texto! Me lembrou um conto do Graciliano Ramos, um dos melhores escritores de todos os tempo em minha opinião!
ResponderExcluirMuito obrigado, Bruna e Emanuella.
ResponderExcluirE, Cléo, Graciliano Ramos é covardia, rs.